Estive no Mato Grosso do Sul, precisamente em minha terra natal, há três semanas. Sabendo que em Dourados – MS vive uma das maiores populações indígenas do Brasil, os terenas e os kaiowas, quis visitá-los. Aliás, conta dona Maria, minha mãe, que eu cheguei ao mundo pelas mãos de uma parteira da etnia terena. Talvez esta seja a razão germinal da minha simpatia pelos nossos nativos, a quem chamo de legítimos brasileiros.
Mas vamos ao que interessa:
Interpelei alguns douradenses urbanos, querendo saber suas impressões sobre os povos da floresta. E, para minha surpresa, absolutamente todos a quem perguntava, respondiam, com uma voz desdenhosa: “são todos preguiçosos” e outras variações desta mesma sentença: “são vagabundos, não querem saber de trabalhar; ou mesmo manhosos, corpo mole, etc”. Todas as opiniões desqualificavam os ameríndios, colando neles algum rótulo depreciativo.
Meu desconcerto com a opinião alheia sobre os nativos ficou acentuada quando resgatei da memória uma viagem que fiz para a Amazônia, na região do Rio Madeira, onde fiquei por uma semana. Naquela região há 41 etnias indígenas, dentre as quais, os Cintas Largas, os Amondawa, os Tupari, os Karitianas Kapivari, os Oro Waranxijein, os Cassupã, dentre outras. Todas as etnias com seus costumes culturas e idiomas distintos. Disse que meu desconcerto ficou acentuado, porque lá, no norte do país, tanto quanto na região central, a opinião era a mesma. Apesar da distância de mais de 2.500 quilômetros, a opinião sobre nossos irmãos da floresta era idêntica. Em Rondônia, os moradores da cidade também consideram os nativos como pessoas preguiçosas!
Intrigado, quis pensar. E pensei a partir da pouca base teórica que acumulei nestes anos de vida. Cheguei a uma hipótese que não pretende ser absoluta, mas que pode satisfez meu incomodo.
Nós pensamos o mundo e julgamos as posturas dos outros a partir da nossa própria cultura, que é predominantemente ocidental. E nela é praticamente inconcebível imaginar um homem ou uma mulher se recusar a trabalhar, no mínimo, oito horas por dia. Fomos assim formados, induzidos a acreditar que é necessário trabalhar pelo menos um terço do nosso dia, quando não mais. Aqueles que se recusam se inserir nesta dinâmica são logo rotulados negativamente.
O fato é que desde o advento do capitalismo, sabemos que o trabalho humano é explorado pelo capital a partir da extração daquilo que o sociólogo alemão Karl Marx chamou de “Mais Valia”.
Antes de prosseguir, saiamos do tema para uma ponderação importante: nós, cristãos fomos ensinados a desprezar, evitar e condenar Karl Marx. A razão desta ojeriza advém do fato inequívoco de que ele, como defensor do comunismo, dizia que a prática da religião era prejudicial às pessoas e que as impedia de evoluir. Afirmações com as quais, por óbvio, eu não concordo. Entretanto, e a despeito de não concordar com algumas de suas ideias, outras teorias podem ajudam-nos a compreender a sociedade contemporânea. A teoria do trabalho e da Mais-Valia oferecem pistas interessantes. Voltemos ao tema:
Em sua teoria do valor-trabalho, o filósofo provou que apenas pequena parcela das 8 horas de trabalho são, de fato, necessárias para a manutenção das fábricas, com pagamentos dos impostos e salários e matérias primas. O restante, parcela maior do resultado do trabalho humano, comporia altas margens de lucro: o que ele chamou de Mais Valia. O fato é que esta teoria é institucionalizada e escondida dos trabalhadores que, alienados deste saber, aceitam o jugo de longas jornadas de trabalho.
Somos submetidos à uma enxurrada de conceitos predefinidos, que cumpre o papel de nos fazer acreditar que devemos trabalhar oito horas por dia, cinco dias da semana. Mansamente o fazemos sem saber que destas jornadas de trabalho, uma parte considerável delas é destinada para concentrar riqueza para os grandes grupos econômicos mundiais. Obviamente esta lógica não vale para os pequenos e micro negócios.
E desta crença, consideramos aberração se, porventura, encontrarmos alguém que, por razão cultural, se recuse se submeter às jornadas diárias de trabalho, com a qual estamos acostumados.
Nossos irmãos ameríndios, não foram adestrados nos moldes da sociedade ocidental. Para eles o trabalho é para a sua subsistência, de seus parentes e da tribo em geral. Trabalham para se alimentar, se vestir, ritualizar e se abrigar do sol e chuva. Não precisam estocar grandes quantidades de alimentos em celeiros imensos. Trabalham apenas para garantir sua vida e a vida da comunidade. Para os nativos da floresta não existe o sentido de “lucro”, sob o qual nós, povos dito civilizados, estamos submetidos, como um deus magno.
Desse modo, eles podem trabalhar apenas uma pequena parcela do dia e no restante podem fazer festa, jogar, brincar, educar seus descendentes, fazer seus cultos religiosos, dormir, enfim, podem viver em função da vida e não em função do lucro.
Além do mais, conforme Eduardo Viveiros de Castro, é preciso destacar que para a cultura indígena, o trabalho não está desvinculado da celebração e das festividades, tudo está interligado e obedecendo uma lógica holística.
Assim, quando o índio é interpelado por alguém que deseja dele extrair a mais valia, obrigando-o a trabalhar oito horas por dia, ele, com certeza recusará. Recusará porque não compreende esta lógica sob a qual nós, urbanos, ocidentais, aceitamos pacatamente a condição de que a vida se submete ao lucro.
E nós sentenciamos de imediato: é preguiçoso!
Será mesmo?
Ronei Costa Martins Silva