O estampido do martelo fazendo entrar prego na madeira me faz lembrar meu irmão, Salvador. Ele adoecera gravemente. Na agonia meu pai juntou os outros filhos e combinou que o dinheiro daquela safra de milho, colhida dentro em dois meses, seria utilizado para pagar o tratamento do caçula. Mas meu irmão não quis esperar. Numa noite dolorida ele não resistiu e morreu.
Naquela época a morte não permitia recolhimento inerte. Era preciso, entremeados de choro e dor, providenciar com as próprias mãos o velório e o enterro. O último banho do Salvador cabia à mãe. O cuidado em mornar a água no fogão a lenha parecia irracional e era, mas compunha um ritual simbólico e sagrado. A água aquecida, temperada de lágrimas maternas, era a benção necessária para quem vai e para quem fica. Enquanto minha mãe dava o banho no Salvador, coubera a mim escolher a roupinha com a qual ele seria definitivamente vestido. Com esmero, escolhi uma camisa azul pequenina e uma bermudinha marrom. Não havia sapatinhos, nem chinelos, peguei então, por derradeiro, as meias. Na noite escura meu pai e meu outro irmão saíram a procura de pedaços de madeira para fazer o caixãozinho. Depois do banho tomado a mãe cuidou de vesti-lo, deitou-o em sua cama e ficamos olhando seu sono definitivo. Nesta hora o pai, já com as madeiras espalhadas no terreiro, escolhia as melhores peças para fazer o invólucro fúnebre. Eu, debruçado sobre o parapeito da janela, observava tudo, atento feito um animalzinho. Ele segurava o martelo com a mão direita, com a outra juntava os pedaços de madeira e com a mesma mão do martelo buscava um prego que antes já tinha sido colocado eu sua boca. Parecia proposital que a sua saliva lubrificasse o prego, facilitando sua penetração na madeira. Primeiro ele aprumava o prego, dando sutis marteladas quase inaudíveis, depois vinha com duas ou três estacadas fortes, definitivas, cujo estampido ecoava na noite silenciosa. O empenho nos golpes do martelo significava algo a mais: com os batimentos e sem chorar o pai dava vazão ao seu sofrimento. Foi assim, até ele terminar aquela caixa, último bercinho do meu irmão.
Passaram-se décadas e hoje, enquanto me lembro do som do martelo, percebo que mercantilizamos a morte. A comodidade oferecida pelas empresas de funerais nos distancia do exercício da despedida tão importante para a vivência do luto. Não sei se eu seria capaz de, podendo escolher, agir tal como meus pais, mas uma coisa é certa: a vivência do luto ativo era mais saudável do que atualmente, pois hoje contratamos profissionais, sem quaisquer vínculos afetivos, para um ritual sagrado que só poderia ser conduzido dignamente pela família.
Ronei Costa Martins Silva.