A MORFOLOGIA DO LUGAR DA ASSEMBLEIA E SUA
CORRELAÇÃO COM O SENTIDO DE CRISTO TOTAL
Capítulo quinto
QUESTÕES PRÁTICAS
…cada um filho de suas obras. (Sancho, em o engenhoso fidalgo
(Dom Quixote de La Mancha)[1]
Neste capítulo, estudaremos a forma do lugar da assembleia a fim de encontrar uma tipologia geométrica que possa ser a expressão dos conceitos anteriormente refletidos. Em seguida, será apresentado um conjunto de projetos concebidos em sintonia com os conceitos aqui expressos.
5.1 A morfologia do lugar da assembleia
A partir de todo o referencial teórico aqui reunido, e ainda fundamentado em pesquisa bibliográfica, a seguir citada, estudaremos as formas do lugar da assembleia que, segundo alguns especialistas, melhor expressam o sentido defendido nas páginas anteriores. Ousaremos buscar a consolidação dos princípios teóricos refletidos na espacialidade, no lugar da assembleia, na pretensão de alcançar uma forma que possa contribuir e promover uma verdadeira assembleia participante.
Inicialmente, Bergamo e Petre, na obra “Spazi celebrativi. L’architettura dell’ecclesia”, apontam como premissa básica a ideia da centralidade[2]: “Infatti la struttura della liturgia è una struttura centrípeta.”[3]
A ideia da centralidade é bastante simbólica, sem deixar de ser funcional, prática e reveladora. Permite a percepção do sentido do Corpo Místico, na medida em que as pessoas da assembleia se postam, ombro a ombro, à mesma distância do centro, como um encontro de irmãos, de fato. Para que a assembleia aconteça, convém que o lugar permita e promova interações mútuas entre os membros, tal como representado conceitualmente na ilustração 03.
Entretanto, e apesar de todos os esforços do Movimento Litúrgico e do Vaticano II, nossos autores mostram que ainda prevalece nos espaços litúrgicos cristãos formatos de assembleias incompatíveis com a necessária vivência em comunidade (ilustração 04):
A forma de disposição da assembleia, acima ilustrada, é absolutamente coerente com o período medieval, no qual houve o sufocamento da participação da assembleia, negando a herança dos primeiros cristãos, e que foi sabiamente recuperada pelos já citados Concílio e Movimento Litúrgico, mas que ainda precisam contagiar o seio da maioria das comunidades cristãs.
No entendimento de Bergamo e Del Petre, não se pode prescindir da ideia da centralidade, que pode ser geométrica/geográfica, ou apenas visual/simbólica, a depender do que se apresenta de desafio ao se edificar a casa de oração. Em seu livro, os autores esquematizam um conceito de encontro para a celebração eucarística (ilustração 05):
Na ilustração acima vemos todos em torno do altar, clérigos, acólitos, leitores, cantores, assembleia. Aqui se percebe um Corpo, uma comunhão, uma vivência relacional, que é sinal profético da Parusia.
Adiantamos, entretanto, que não se trata de defender a construção de igrejas redondas, circulares. Nada disto. O que se defende aqui é a ideia conceitual do círculo ou semicírculo e da centralidade, conceito que poderá ser aplicado nas mais variadas formas geométricas, como poderá ser visto mais adiante nos projetos desenvolvidos por este autor e que serão expostos nesta monografia.
Em seguida, baseados em ensaios, estudos e pesquisas, Bergamo e Petre evoluem para a ideia do semicírculo. Defendem que nesta formato todos os participantes podem se ver uns aos outros, reconhecer, falar e ouvir. Em suas palavras:
In primo luogo la disposizione che oggi consente di realizzare questo non può essere che uma figura a emiciclo chiso, nella quale ogni participante possa vedere in facia gli altri, ci si possa riconoscere, parlare e ascoltare reciprocamente. Tutti protagoniste. L’immagine può anche essere presa dai cori monastici.[4]
Ainda fazem referência aos coros das igrejas dos monastérios, nos quais, como já visto aqui, a assembleia é dividida em duas partes, uma de frente para a outra, de tal modo que todos se entreolham, escutam-se e se relacionam, como corpo eclesial.
Albert Gerhards[5], no artigo “Il dibattito sull’orientamento: riflessioni teologiche”, traz importante contribuição deixada pelo arquiteto Rudolf Schwarz. Em sua publicação, ele reproduz desenhos esquemáticos do arquiteto, que serão aqui também reproduzidos:
A ilustração 06 mostra uma assembleia reunida diante do altar. As linhas verdes são caminhos imaginários que supõem a direção visual dos fiéis. Percebe-se, neste esquema gráfico, diversos obstáculos à boa participação na ação litúrgica: a distância das últimas cadeiras, o obstáculo visual que os primeiros impõem aos últimos, a negação do olho no olho do irmão, que neste formato se reduz a ver a nuca dos que compartilham do mesmo Pão. Mas, além disso, e talvez o maior obstáculo, há a inércia que este formato impõe. Neste esquema de disposição para o lugar da assembleia, não há espaço para o protagonismo da assembleia, mas sim para uma passividade medieval. Para este lugar, não seria exagero afirmar que a terminologia já ultrapassada “assistir à missa” seria bastante coerente. Tal como uma sala de cinema ou algo correlato, os convidados sentar-se-iam, assistiriam e, ao final, retirar-se-iam. Algo que, para uma sala de espetáculos é perfeitamente aceitável, jamais para um espaço litúrgico cristão.
Mas, na mesma obra, Albert Gerhards mostra o contraponto didaticamente exposto por Schwarz:
Ao contrário da ilustração 06, na qual a assembleia estava reunida diante do altar, nesta ilustração (07), o povo está reunido no entorno do altar. E tal disposição soluciona vários problemas encontradas na primeira suposição. Aqui supõe-se maior interação e participação. Além das pessoas estarem mais próximas do altar, elas podem se reconhecer, olhar-se e se perceber membros do Corpo Místico. E diferentemente do primeiro esquema de disposição, neste, a inércia diminui, pois todos estarão ao redor do altar, participando de fato do banquete e não apenas assistindo.
Enquanto naquele esquema (ilustração 06), valoriza-se a ideia de plateia, na qual todos ficam de frente para o “espetáculo”, neste (ilustração 07), valoriza-se a ideia da centralidade, na qual todos ficam no entorno do Altar, no qual acontece a celebração do Mistério Pascal de Cristo, do qual todos são herdeiros.
Entretanto, segundo Bergamo e Petre, não se poderá basear a formação de um espaço litúrgico para a assembleia apenas na ideia de centralidade[8]. Nossos autores afirmam que o espaço carece de outro elemento simbólico que remeta à dimensão escatológica[9]. Segundo suas convicções, esta característica poderá ser representada no ambiente litúrgico pela axialidade[10], ou seja, por um eixo longitudinal, que simbolize a trajetória do peregrino rumo à Pátria Definitiva, a Jerusalém Celeste. Vejamos o que dizem a este respeito:
Questa disposizione trova riscontro anche nell’assialitá simbólica che fa riferimento sai all’ingresso processionale nella chiesa, sai a quello rituale di innesto nel corpo del’assemblea segnato dai sacramenti dell’iniziazione Cristiana, di cui è fondamentale rimanga costante memoria nella vita litúrgica dei cristiani.[11]
Na axialidade encontra-se o corredor central, a via lux, que é sinal da caminhada do povo peregrino rumo ao encontro com o ressuscitado. Por esta razão que as casas da Igreja dos primeiros séculos possuíam a fonte batismal na porta de entrada da igreja e na outra extremidade, na abside, encontrávamos o ressuscitado, ou o bom pastor, ou mesmo o Cristo rei do universo (pantocrator). Numa extremidade, somos enxertados no corpo da assembleia via Iniciação Cristã, e na outra, há o ingresso na Pátria Definitiva (ilustração 08).
Na tradição, esta tensão escatológica expressa, principalmente, pelo eixo longitudinal onde se encontrava o corredor central, obedecia à orientação da trajetória aparente do sol. A porta de entrada a oeste e a abside a leste. Isto para reforçar a ideia-símbolo de Cristo como sol da justiça. Assim nossos autores afirmam: “Nel simbolismo della tradizione la tencione escatologica era expressa prevalentemente dall’asse longitudinale-orizzontale ‘ocidente-porta-abside-oriente’, basato sul símbolo del sole nascente como Cristo ‘Sol Justitiae’ che deve venire della gloria”.[12]
Esta condição de posicionar a edificação no eixo de trajetória aparente do sol, entretanto, também encontra obstáculos. O maior deles diz respeito ao formato e dimensões do sítio onde a casa da Igreja será edificada. Nem sempre será possível posicionar a edificação voltada com a sua abside, ou outro elemento da arquitetura que seja correspondente, para o sol nascente. Entretanto, sendo possível, é sempre aconselhável.
Ainda sobre esta tensão escatológica, Bergamo e Petre sugerem que a Igreja é um corpo de pessoas presentes na terra, mas que tem a cabeça no céu[13], tal como se percebe nas pinturas do período Bizantino, nas quais os santos e as pessoas retratadas nas obras sacras eram disformes, evidenciando uma certa longilinidade simbólica, na qual se poderia interpretar que aquela pessoa possuía os pés na terra, mas a cabeça estava no mundo celeste, um sinal de primorosa espiritualidade.
Imagens bíblicas desta axialidade pretendida, que liga céu e terra, podem ser percebidas nas alegorias da árvore da vida do Éden, o arco íris de Noé, a escada de Jacó e a mais significativa, a cruz de Cristo.[14]
Ainda em defesa da ideia de axialidade, Armando Cuva tem contribuição interessante:
A assembleia litúrgica e cada um de seus participantes tomam plena consciência do vínculo profundo existente entre a liturgia terrena e a liturgia celeste, tornando-se testemunhas e intérpretes da espera escatológica da Igreja inteira, que anseia pela sua realização plena e definitiva na Jerusalém celeste.[15]
Para eles, então, é indispensável conceber uma forma arquitetônica para o lugar da assembleia que combine a “centralidade” com a “axialidade”. Uma convergência para o centro do Mistério Pascal, combinada com a tensão escatológica representada pela axialidade longitudinal/horizontal do corredor central, que é sinal da axialidade vertical céu-terra. Dizem assim, nossos autores:
È necessário quindi coniugare l’assealitá longitudinale com questa convergenza verso il centro, al fine di porre in tencione l’assemblea e di aprirla nella dimensione del mistero che celebra. Bem si presta a questo um assialitá verticale ‘cielo-terra’.[16]
Eles propõem, então, um binômio que fará a síntese destas importantes reflexões: Corpo–Assembleia: centralidade; Tensão escatológica–axis mundi: axialidade.[17]
Bergamo e Petre afirmam que, somente na combinação equilibrada destas duas dimensões em um círculo orientado, a casa da Igreja poderá ser construída em consonância com aquilo que foi desejado pelo Concílio Vaticano II[18]. A Ilustração 09, extraída de sua obra e relida por este autor, poderá melhor representar esta ideia:
Na imagem acima, estão representadas, de forma conceitual, a ideia da combinação entre centralidade e axialidade. No centro, a mesa da eucaristia, sinal primeiro do espaço litúrgico. Polissêmico, a mesa da eucaristia é pedra do sacrifício, mesa do banquete e é o próprio Cristo. É, portanto, sinal de remissão da humanidade, para o qual todos devemos estar voltados, além de estarmos próximos. A axialidade escatológica é representada pelas linhas tracejadas. Na extremidade inferior, encontra-se a fonte batismal e a entrada da Casa da Igreja. Na outra extremidade, encontra-se a parede côncava que acolhe quem chega. Nesta parede, é aconselhável que esteja o ícone do Cristo Ressuscitado, que aguarda o fiel na conclusão de sua caminhada peregrina. Eis o que os nossos autores chamam de tensão escatológica.
Finalmente, baseados nas teorias do binômio centralidade-axialidade, Bergamo e Petre fizeram inúmeros ensaios e pesquisas, retratados em sua obra e, aqui, nesta monografia, parcialmente refletidas, questionadas e ampliadas.
Os estudos e pesquisas acerca da forma dos lugares da assembleia seguiram critérios principais tais como a participação da assembleia, a dinâmica hierárquica e a figura do corpo da assembleia. Ainda foram considerados outros critérios secundários, sendo eles: o compartilhamento de objetivos e conhecimento do rito e seu desenrolar; distância entre as pessoas; convergência e articulação hierárquica; obstrução (após a quarta fila, a visão se perde e, portanto, igualmente se perde relação com o que acontece no centro); dimensão do grupo (tamanho da assembleia), fala-se em, no máximo, 200 pessoas; e semântica do signo: simbolismo, iconografia.[19]
Eles ensaiaram tipologias para o lugar da assembleia, para cinco capacidades, 50, 100, 200, 400 e 800 pessoas. Entretanto, e considerando o já refletido neste trabalho com relação ao tamanho das casas da Igreja, esta monografia descartará o ensaio para a menor capacidade, priorizando as quatro maiores capacidades.
Muito embora, na pesquisa de Bergamo e Petre, não se perceba informações com relação às dimensões de corredores e outras interdistâncias, para esta releitura, considerou-se, para o corredor principal (via-lux), a largura de 3,00 metros e, para os corredores secundários, a largura de 1,20 metros. A distância entre as fileiras de cadeiras ficou com 1,20m, de tal modo resultando em um espaço livre de 0,60 metros, favorecendo a circulação.
Apesar de ser essencial e indispensável a reserva de lugares para acolher deficientes físicos, pessoas obesas e outras pessoas com características especiais, esta previsão não será objeto deste ensaio, por uma razão simples: aqui serão realizados ensaios hipotéticos em vista do debate conceitual. Tal previsão projetual deve acontecer na fase dos projetos arquitetônicos executivos específicos para cada caso.
Os estudos se basearam na ideia da centralidade e da axialidade. Para tanto, no espaço foi posicionado apenas o altar, de modo a permitir a leitura da centralidade em relação a este monumento pascal específico.
Em consideração à orientação da Instrução Geral do Missal Romano – IGMR, que apela para a garantia de uma conveniente comodidade dos fiéis[20], é necessário aqui registrar que é de fundamental importância o cuidado com a dimensão do conforto ambiental do espaço litúrgico. A preocupação tanto com as questões de conforto acústico, quanto com o conforto térmico são imprescindíveis. Este trabalho, entretanto, não entrará nesta seara. As análises aqui expostas cuidarão apenas da disposição do lugar da assembleia visando dar sentido à percepção de comunidade como Corpo Místico.
Também é salutar registrar que os ensaios supõem cadeiras, ao invés de bancos. É costume, entretanto, a utilização de bancos nas igrejas. Sabe-se que este mobiliário impõe certo imobilismo à assembleia, comprometendo a participação ativa, desejada pelo Vaticano II, entretanto e a despeito desta orientação, percebe-se grande resistência à utilização de alternativas aos bancos. Respeitando-se a originalidade da pesquisa, este autor manteve a utilização de cadeiras para a acomodação dos fiéis no lugar da assembleia. Contudo, na releitura espacial/gráfica feita pelo autor desta monografia, foram consideradas dimensões das cadeiras (70cm x 50cm, ilustração 10), que fossem semelhantes às dimensões e capacidades dos tradicionais bancos, inclusive com previsão para genuflexórios, de tal modo a não comprometer a leitura e interpretação das informações aqui expostas, independentemente do mobiliário a ser utilizado.
Feitas estas considerações, sigamos adiante, analisando os estudos de Bergamo e Petre, com relação ao lugar da assembleia:
A primeira tipologia do lugar da assembleia refere-se a um templo retangular (igreja corredor), forma bastante conhecida e difundida. Já, a segunda tipologia, é bastante semelhante à primeira, apesar de ter uma forma angular aguda, em 45º.
Nestas duas tipologias verificam-se todos os problemas já elencados ao longo deste trabalho, dos quais os maiores são o impedimento à efetiva participação e o bloqueio que se impõe ao reconhecimento do fiel como membro do Corpo Místico, formatos, portanto, incoerentes com a renovação conciliar.
A terceira tipologia sugere uma conformação em ângulo reto, 90 graus (ilustração 13).
Neste formato, segundo nossos autores, os problemas persistem e são potencializados. Para eles, este formato em leque aumenta a quantidade de lugares mais distantes do altar.
Entretanto, chama a atenção o fato de que a acomodação para 100 pessoas se dá com três fileiras de cadeiras/bancos, tendo, apenas em um trecho, uma quarta fileira. Se compararmos com a primeira tipologia, veremos dez fileiras. Se olharmos para a capacidade máxima, a situação se repete. A primeira tipologia precisa de 25 fileiras para acomodar 800 pessoas, enquanto que esta tipologia (03), precisa de apenas 16 fileiras.
Sobre as distâncias entre os lugares da assembleia e o altar, reclamadas por Bergamo e Petre, verificou-se, com relação à maior capacidade (800 pessoas), que, para a terceira tipologia (legue de 90º), o lugar mais distante estará a 26,80 metros do altar, enquanto que, para a primeira tipologia (igreja corredor), o lugar mais distante estará a 33,29m, (6,49 metros mais distante).
Tais constatações percebidas na mensuração dos desenhos em escala nos permitem, de modo pontual e sem perder de vista a imensa contribuição dos nossos autores, dialogar com suas análises, apresentando uma outra percepção técnica.
Se comparadas as três primeiras tipologias, evidentemente, a terceira é mais adequada para a promoção dos valores eclesiais inerentes à assembleia litúrgico-cristã. Entretanto, outras tipologias muito mais interessantes ainda serão analisadas.
A quarta tipologia se dará, enfim, num semicírculo, com convergência de 180º (ilustração 14), enquanto que a quinta tipologia estenderá a ideia do semicírculo para um ângulo de convergência de 270º (ilustração 15).
.[25]
Pode-se perceber nestas duas tipologias a maior valorização da assembleia comunitária, em consonância com o espírito conciliar[26]. Além dos participantes estarem mais próximos do altar, eles poderão se olhar, se relacionar (lembremos que somos discípulos de um Deus relacional, um Deus que escolheu se revelar à humanidade na condição de comunidade-três pessoas), e se relacionando, percebendo-se membros do mesmo Corpo, fortalecer os vínculos de fraternidade, cimento que une os membros uns aos outros.
Por fim, nossos autores trazem a sexta e última tipologia, finalizando o conjunto estudado com a circunferência completa – 360º.
Analisando esta tipologia de círculo fechado, Bergamo e Petre apresentam a dificuldade de se dispor a estrutura hierárquica do Corpo[28], razão pela qual, desde o início, os pesquisadores buscaram defender a tipologia em semicírculo, em detrimento das demais.
As considerações dos autores com relação à tipologia de círculo fechado serão colocadas à prova, nesta monografia, quando, oportunamente, apresentarmos projetos já realizados, com especial destaque para o projeto da capela de São José de Anchieta, em Itanhaém. Nele, a ideia do círculo fechado foi uma escolha, sem, no entanto, comprometer a ideia de hierarquia do corpo eclesial.
Diríamos, entretanto, após análise destas seis tipologias, e considerando a necessária combinação entre centralidade, axialidade e manutenção da hierarquia do Corpo Místico de Cristo, a Igreja, que as formas mais adequadas são as tipologias quatro e seis, cujas convergências se dão a 180º e 270º.
Reforçamos, entretanto, que estes desenhos são conceituais. A ideia principal é a busca pela disposição da assembleia ao entorno do altar, de modo a permitir que todos se aproximem e se sintam participantes do que ali se realiza. E esta condição poderá ser alcançada em diversos formatos geométricos de disposição da assembleia, não sendo necessariamente o círculo ou semicírculo, do ponto de vista literal, mas seu conceito, seu sentido, qual seja, de promover a centralidade do altar, de aproximar o máximo possível as pessoas do centro e de colocá-las lado a lado, ombro a ombro e face a face para que se percebam membros de um Todo maior.
Desse modo, a pesquisa, aqui parcialmente reproduzida, oferece enorme contribuição para o desenvolvimento desta monografia, mas, sobretudo, para aqueles que pretendem construir, reformar ou readequar a casa da Igreja a partir das premissas do Concílio, valorizando a presença de Cristo na comunidade reunida em oração.
5.2 A edificação do lugar da assembleia – a prática
A meditação dos conceitos externados ao longo desta monografia impactou decisivamente na produção arquitetônica do espaço litúrgico desenvolvida pelo nosso atelier, de tal modo que, saindo do campo teórico, mas sobretudo a partir dele, serão aqui apresentadas quatro obras realizadas que acolheram os princípios refletidos ao longo destas páginas.
O exercício prático da produção arquitetônica também foi fator determinante para a assimilação e aprimoramento dos conteúdos aqui expostos. A associação entre os estudos teóricos e a prática da arquitetura, num ciclo de retroalimentação, permitiu o fechamento do círculo hermenêutico: a teoria uma vez aplicada, resultando num produto. Este, por sua vez, permitindo o aprimoramento dos conceitos teóricos, que aprimorados, aperfeiçoarão ainda mais o produto. Tratamos então de uma espiral, na qual, apesar de circular, nunca se retorna ao mesmo ponto, mas sim num estágio superior. Esta foi a experiência absorvida com relação à aplicação dos conceitos teóricos ao exercício da produção arquitetônica do lugar da assembleia.
Inevitável não convidar Paulo Freire. Em a Pedagogia da Autonomia, obra de 1.996, nosso patrono afirma “a reflexão crítica sobre a prática se torna uma exigência da relação Teoria/Prática sem a qual a teoria pode ir virando blábláblá e a prática, ativismo.”[29]
Além disso é necessário registrar que todos os projetos desenvolvidos pelo nosso atelier, inclusive estes aqui elencados, são acompanhados de uma oficina de formação litúrgico/catequético para a comunidade. Nesta oficina são oferecidos às comunidades os conceitos elencados nesta monografia, bem como outros que aqui não puderam ser acolhidos, em razão da objetividade do nosso tema. O interessante é que a experiência nestas atividades nos revela que após um simples momento de formação as pessoas compreendem e passam a defender a necessidade de se readequar o lugar da assembleia.
Tal constatação é sinal inequívoco de que é possível virar as nossas velas na direção dos ventos do Concílio Vaticano II, insuflando-as para que elas nos conduzam para uma experiência de comunidade relacional e comunhonal, da qual somos todos herdeiros.
Como já dito anteriormente, a ideia de círculo e semicírculo, sugerida neste trabalho para a organização do lugar da assembleia não se refere ao sentido literal das figuras geométricas, mas sim de sua condição de centralidade, de tal modo que se poderá perceber tal centralidade em outras variadas formas geométricas. Assim, nenhum dos projetos que aqui serão expostos apresentam a forma pura de círculo ou semicírculo, entretanto todos eles trazem em si o sentido da centralidade e da axialidade, necessários ao espaço litúrgico pós-conciliar.
Sem delongas, comecemos pela casa da Igreja de São José de Anchieta. Uma capela particular, com capacidade para 130 pessoas, desejada pelo bispo diocesano que será edificada na cidade de Itanhaém.
A ideia inicial foi colocar a assembleia ao entorno do altar e os demais monumentos pascais permeando a assembleia, de modo a estimular a vivência dinâmica da liturgia que se ancora nos aludidos monumentos (ilustração 17).
A planta da capela privilegia o encontro. Todos à vista de todos. A comunidade se vê, e ao se ver toma consciência de sua condição de Corpo Místico de Cristo: a Igreja. A axialidade escatológica também foi garantida, muito embora a fonte batismal esteja numa das laterais da capela, a porta de entrada dá o sentido ao início da caminhada, enquanto que, na outra extremidade, está o Cristo Bom Pastor. No meio do caminho, o Altar e, sobre ele, na mesma prumada, a cruz, ambos como sinal de que a morte não tem a última palavra, mas sim a ressurreição será o destino final (ver ilustrações 19 e 20).
Como se trata de uma capela para até 130 pessoas, não foi necessário colocar degraus para o presbitério. Os locais das duas mesas (Eucaristia e Palavra) apenas foram marcados com uma diferenciação no piso, para evidenciar o lugar Santo. Isto também favorecerá a percepção da noção de Corpo da comunidade.
Se considerarmos as seis tipologias apresentadas por Bergamo e Petre, o lugar da assembleia da capela São José de Anchieta está vinculado à tipologia seis, convergência 360º, círculo fechado.
Muito embora, nas análises das tipologias, os autores condenem esta tipologia, alegando que tal disposição impede a consolidação da noção de hierarquia no corpo eclesiástico, neste projeto, o que se percebe é a harmonia entre a ideia do círculo fechado com a assembleia ao entorno do altar e a manutenção do sentido hierárquico. E isto foi possível mediante a posição da sédia, que se encontra sob o ícone do Bom Pastor, bem como seu distinto desenho que dialoga com os demais monumentos pascais (altar, ambão e fonte).
Será apresentado, a seguir, o projeto de construção da casa da Igreja da comunidade de Santo Antônio, em Limeira SP. Este projeto foi desenvolvido seguindo os mesmos princípios de valorização da assembleia orante, garantia do sentido escatológico, na axialidade e manutenção da ideia de hierarquia no corpo eclesial. O templo acolherá 300 pessoas.
Neste caso, considerando as tipologias analisadas por Bergamo e Petre, poderíamos afirmar que esta planta se encaixa na tipologia 04, convergência em 180º, como um semicírculo. Modelo ideal defendido pelos autores e que de fato, contribui sobremaneira para o fortalecimento do sentido de comunidade. Garantindo a ideia da tensão escatológica, em uma extremidade temos a porta de entrada, no meio, a cruz processional e o altar e, na outra extremidade, o ícone do Cristo Ressuscitado, de braços abertos a acolher o peregrino caminhante.
A seguir, veremos o projeto para a Casa da Igreja da comunidade de Nossa Senhora das Graças, em Limeira. Com planta bastante semelhante à anterior, o projeto se enquadra da tipologia 04, de semicírculo, cujas vantagens já são bastante conhecidas. A casa de oração acolhe, atualmente, cerca de 280 pessoas.
Por fim, apresentaremos uma readequação litúrgica. Trata-se da casa da Igreja da comunidade de Nossa Senhora de Lourdes, em Campinas SP. Uma edificação existente, construída há mais de 40 anos que, apesar de ter sido edificada após o Concílio Vaticano II, seus responsáveis ignoraram solenemente os bons ventos reformadores, tal como se vê na maioria das comunidades, quase como regra.
A situação atual é idêntica à tipologia 01, estudada por Bergamo e Petre. Uma igreja corredor, modelo prejudicial à vivência comunitária e à participação ativa na liturgia, conforme poderá ser visto nas ilustrações 25 e 26.
Após reuniões com a comunidade e estudos técnicos acerca da espacialidade do templo, foi sugerida a mudança que alterou significativamente o sentido do espaço. A ideia suporte, que sustentou todo o conjunto da intervenção, veio da regra primeira: a centralidade. Na situação atual a assembleia estava defronte para o altar e, pior, distante dele. Não se podia notar a centralidade do Mistério Pascal, em que orbitamos todos nós. Como o templo já estava construído e não se cogitava qualquer tipo de alteração nos limites da construção, a única alternativa encontrada para se promover a centralidade foi a mudança de local da mesa da eucaristia. A retiramos da frente e a colocamos no meio da assembleia. Como o altar e o templo não foram dedicados, esta proposta foi possível e bem acolhida pela comunidade que, após uma tarde de catequese, entendeu a necessidade da readequação.
Nas ilustrações 27 e 28, poderão ser vistas as alterações propostas.
Diversos outros trabalhos semelhantes a estes foram desenvolvidos, entretanto, após rigorosa triagem, escolhemos estes quatro projetos/obras de arquitetura sacra para representar as possibilidades de construção e readequação do espaço litúrgico, privilegiando o lugar da assembleia, razão e foco do nosso estudo.
A exposição dos trabalhos visou reforçar o debate sobre a valorização do lugar da assembleia a partir de exemplos práticos.
[1] CERVANTES, Saavedra, Miguel de. O engenhoso fidalgo Dom Quixote de La Mancha, Primeiro Livro, edição bilíngue. 7. ed. São Paulo: Editora 34, 2016, p. 678.
[2] Cf. BERGAMO, Maurizio; DEL PETRE, Mattia. Spazi celebrativi. L’architettura dell’ecclesia, p. 198.
[3] Ibid., p. 198. De fato, a estrutura da liturgia é uma estrutura centrípeta (tradução nossa).
[4] BERGAMO, Maurizio; DEL PETRE, Mattia. Spazi celebrativi. L’architettura dell’ecclesia, p. 192. Em primeiro lugar, a disposição que hoje permite que isso seja realizado pode ser apenas uma figura de semicírculo, na qual cada participante pode ver outros cara a cara, reconhecer, falar e ouvir um ao outro. Todos protagonistas. A imagem também pode ser inspirada nos coros monásticos (tradução nossa).
[5] Albert Gerhards, teólogo e cientista litúrgico alemão.
[6] GERHARDS, Albert. Spazio Liturgico e Orientamento, p. 172.
[7] Ibid., p. 172.
[8] Cf. BERGAMO, Maurizio; DEL PETRE, Mattia. Spazi celebrativi. L’architettura dell’ecclesia, p. 200.
[9] Cf. Escatologia é uma disciplina da teologia que aborda o destino final do ser humano.
[10] Cf. BERGAMO, Maurizio; DEL PETRE, Mattia. Spazi celebrativi. L’architettura dell’ecclesia, p. 200.
[11] Ibid., p. 200. Essa disposição também se reflete na axialidade simbólica, que se refere a você conhecer a entrada processional na igreja, o ritual de enxertia no corpo da assembleia, marcado pelos sacramentos da iniciação cristã, dos quais é fundamental manter a memória constante na vida litúrgica da igreja cristã (tradução nossa).
[12] BERGAMO, Maurizio; DEL PETRE, Mattia. Spazi celebrativi. L’architettura dell’ecclesia, p. 201. No simbolismo da tradição, a tensão escatológica foi expressa principalmente pelo eixo longitudinal-horizontal “porta oeste-abside-leste”, baseado no símbolo do sol nascente como Cristo “Sol Justitiae”, que deve vir em sua glória (tradução nossa).
[13] Cf. Ibid., p. 201.
[14] Cf. Ibid., p. 202.
[15] Cuva, Armando. Assembleia, p. 97.
[16] BERGAMO, Maurizio; DEL PETRE, Mattia. Spazi celebrativi. L’architettura dell’ecclesia, p. 201. Portanto é necessário combinar a axialidade longitudinal com essa convergência em direção ao centro, a fim de colocar a assembleia em tensão e abri-la na dimensão do mistério que ela celebra. Bem presta-se a essa axialidade vertical ‘céu-terra’ (tradução nossa).
[17] Cf. BERGAMO, Maurizio; DEL PETRE, Mattia. Spazi celebrativi. L’architettura dell’ecclesia, p. 201.
[18] Cf. Ibid., p. 202.
[19] Cf. Ibid., p. 208.
[20] Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos. Instrução Geral do Missal Romano e Introdução ao Lecionário, 293.
[21] BERGAMO, Maurizio; DEL PETRE, Mattia. Spazi celebrativi. L’architettura dell’ecclesia, p. 209.
[22] Ibid., p. 209.
[23] Ibid., p. 209.
[24] Ibid., p. 209.
[25] Ibid., p. 209.
[26] Cf. Ibid., p. 210.
[27] Ibid., p. 209.
[28] Cf. Ibid., p. 210.
[29] FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: Saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra (Coleção Leitura), 1996, p. 11.