Ano passado fui convidado para palestrar num evento. Aceitei o convite mediante uma clara e inegociável exigência: a companhia do meu filho Benício. Mais ainda, entendendo ser ele a prioridade, afirmei que, havendo necessidade, eu interromperia a dinâmica discursiva em favor dos cuidados para com o meu pequenino

Enquanto ele, sob o olhar atendo da minha esposa, estava circulando no entorno das cadeiras ocupadas, eu comecei meu palavreado com a pergunta com a qual batizo este artigo: o trabalho dignifica o homem?

Imediatamente e sem pestanejar todos que ali estavam responderam que sim, que o trabalho dignifica o homem. Corrigindo o vocábulo para uma versão mais adequada, alguém da plateia apontou: o trabalho dignifica o ‘ser humano’.  A convicção da turma era tanta que revestia o ditado popular de um certo verniz de tese irrefutável, parecia que estávamos diante um dogma.

E se esta pergunta fosse feita ao estimado leitor, o que você responderia?

Bom, na ocasião, afim de clarear as ideias, chamei o Benício para perto de mim. As crianças sempre são impiedosas no ofício de abalar as nossas certezas. Com ele já meus braços, fiz outra pergunta: e o Benício tem dignidade? Desta vez, agora já desconfiados, eles responderam também afirmativamente. Então, de imediato expus a sinuca de bico: mas meu filho não trabalha!

Avançando nas reflexões percebemos, enfim que a dignidade é uma condição que tem um fim em si mesma e não depende de outra componente para existir, ou seja, quem não trabalha também tem dignidade. Por que, então, repetimos este ditado como um mantra das pessoas dignas, em desfavor das demais?

A dignidade da pessoa humana é valor universal e orienta a finalidade do Estado para um único objetivo: a garantia dos direitos fundamentais e a promoção da justiça social. A própria Constituição Federal do nosso país evoca a dignidade humana como um dos pilares da República.

Lembro-me do Evangelho: o administrador saiu para contratar operários para sua lavoura. Contratou alguns as oito horas da manhã; depois voltou á praça as dez horas e chamou outros; então voltou as treze, as quinze e as dezesseis horas, em cada instante chamou porções de trabalhadores. Combinou com todos o salário equivalente a uma diária, valor suficiente para o indivíduo subsistir dignamente por um dia. Ao final do dia, no acerto de contas, aqueles que trabalharam o dia todo resmungaram, pois receberam o mesmo valor daqueles que trabalharam apenas duas horas (Mt.20,1-15).

Os resmungões não perceberam que a lógica inaugurada pelo Nazareno coloca a dignidade humana acima do valor do valioso metal. Todas as pessoas, independentemente da condição laboral, independente do quanto trabalharam, devem ter a sua dignidade preservada.

E não estamos falando de uma grandeza abstrata. A dignidade da pessoa humana se garante com políticas públicas de promoção dos direitos básicos, como a manutenção do Auxílio Emergencial, enquanto durar a pandemia, por exemplo.

Mas, ignorando esta civilidade, repetimos pelos cotovelos que beneficiários do Bolsa Família são vagabundos, pois não trabalham. E ao fazermos isto agimos tal como aqueles trabalhadores resmungões do Evangelho, que se esqueceram que a Vida Digna, proposta por Jesus, é garantia universal que não se limita a quaisquer fronteiras, sejam elas geográficas, econômicas, raciais ou existenciais.

Longe de mim querer construir argumentos para convencermo-nos a não trabalhar. Nada disto! Eu próprio trabalho em meu atelier até doze horas por dia. Apenas suspeito que a vinculação da dignidade humana ao trabalho foi astuta e artificialmente construída na sociedade em favor da concentração de riquezas por parte daqueles que se beneficiam do trabalho alheio. Justamente aqueles que não precisam trabalhar para serem ricos, difundiram a ideia de que é preciso trabalhar para ser digno.

Ronei Costa Martins Silva é arquiteto e urbanista e pós graduado em arquitetura e arte sacra. Possui diversas obras de arquitetura sacra espalhadas por São Paulo e outros três estados. Em 2018 foi convidado para presentear o Papa Francisco com uma obra sua, a Cruz da Esperança. Possui onze obras de arquitetura selecionadas para Mostras Nacionais, sendo duas em 2017 e nove em 2019.

Também é pesquisador da máscara do palhaço há 22 anos, tendo atuado em hospitais, presídios e outros espaços de vulnerabilidade social. É pai do Benício.

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