“Deixai vir a mim as crianças, pois o Reino dos céus é para aqueles que são como elas” (Mt.19-14)
Nos meses de julho dos últimos três anos eu residia no colégio PIO XI, em São Paulo, no qual fazia um curso de arte sacra. Durante o dia estudávamos e a noite nos recolhíamos para os dormitórios. Numa das primeiras madrugadas daquele inverno paulistano, duas estudantes bateram a minha porta insistentemente. Uma delas sofria de uma dor abdominal insuportável. Corremos, noite adentro, em busca de um Pronto Socorro que pudesse acudir a jovem. Ao chegarmos a moça foi socorrida imediatamente, enquanto a outra colega e eu ficávamos na recepção do ambulatório aguardando. Então eis que a nossa espera foi iluminada por uma criança de seus dois anos, toquinha na cabeça, toda recolhida no colo da mãe. Seus pais foram em busca de ajuda para o menino que estava febril. Mas o garoto ao me ver ignorou a febre e de súbito pulou em meu colo, ficando comigo todo o tempo que pôde.
O estranhamento dos pais foi infinitamente menor que o meu próprio, afinal eu nunca fui predileto de bebês, muito menos de crianças que jamais haviam tido um único contato comigo. Muito menos ainda numa condição hostil como a que estávamos naquela noite fria. Como eu poderia ler aquele extraordinário afeto dedicado por um bebê estranho? O que o menino viu em mim que eu não enxergava?
Dias depois minha esposa, Juliana, trouxera boa notícia: estávamos grávidos. Ela havia feito o exame e, querendo partilhar a alegria foi ao meu encontro, mas de algum modo eu já exalava paternidade. Aquele bebê do pronto socorro percebeu e quis me dizer, mas eu não compreendia sua linguagem. Foi então que me percebi adestrado, tal como animais de circo que são treinados para entender apenas poucos estímulos específicos, ignorando a imensa maioria dos outros signos. Aquele bebê sentia a paternidade em mim, mas eu, além de ser incapaz de perceber seus sinais, estava aquém de sua sensível humanidade. Seu olhar expandido se contrapunha com um tipo de cegueira que atinge os adultos e com a qual me acostumara.
Francis Scott, poeta norte americano, apresenta-nos Benjamim Button, um homem que nasceu velho, rejuvenesceu e morreu bebê. Sua obra oferece uma pista intrigante: seriam os bebês as melhores versões de nós mesmos? Seria por isto que Peter Pan não quisesse crescer? Seria esta a razão de Jesus, o Cristo, ter especial predileção pelas crianças?
Receio que sim. As crianças possuem virtudes para além do que reconhecemos e temo que impomos a elas um conjunto de normas adestradoras que castram seus dons, forçando-as a abandonar sua beleza pueril para adentrar na formalidade do mundo dos adultos.
Ronei Costa
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