A MORFOLOGIA DO LUGAR DA ASSEMBLEIA E SUA
CORRELAÇÃO COM O SENTIDO DE CRISTO TOTAL

Capítulo terceiro

QUESTÕES SOCIOLÓGICAS

Somos una especie en viaje

No tenemos pertenencias, sino equipaje

Vamos con el polen en el viento

Estamos vivos porque estamos en movimiento

(Jorge Drexler, canção Movimiento)[1]

Neste capítulo, trataremos das tensões existentes no lugar litúrgico entre corpo clerical e corpo laical, bastante evidente durante a Idade Média, quando clero e assembleia eram separados até por barreiras físicas, como vimos no capítulo primeiro. Veremos, também, que estas tensões ainda produzem consequências na atualidade. Em seguida, trataremos da conceituação das terminologias “espaço” e “lugar”, visando qualificar, do ponto de vista fenomenológico, o lugar da assembleia. A partir destes conceitos, poder-se-á verificar a tipologia dos ambientes existentes nos templos cristãos ao longo da história e na atualidade.

No fecho deste capítulo, trataremos da coexistência de diferenças não assimiladas, uma qualidade sociológica fundamental para o crescimento e fortalecimento de uma comunidade.

3.1 As tensões simbólicas no lugar litúrgico

Segundo Pierre Bordieu, sociólogo francês, em “A economia das trocas simbólicas” (obra que reúne parte da produção teórica de Bourdieu sobre o tema, organizada pelo sociólogo brasileiro Sérgio Miceli), a sociedade é como um campo onde os atores sociais se encontram, harmonizam-se e se chocam, baseados em signos, significações e simbolizações, dos quais se originam as relações de força. Bourdieu propõe uma ruptura com o marxismo no que se refere à definição da luta de classes e os conflitos a ela inerentes. Para substituir esta teoria, ele propõe o conceito de lutas simbólicas.[2]

Sugere, através deste conceito, a compreensão de como uma autoridade política e/ou religiosa se perpetua no poder sem recorrer a mecanismos de violência clássica, chamando a isto de violência simbólica[3], a partir do carisma ou encanto daquele que detém o poder. Por estas razões, a autoridade é legitimada, defende o sociólogo.

O construtivismo estruturalista de Bourdieu apresenta estruturas socialmente construídas, que impõem alguma coerção sobre a ação dos indivíduos em uma relação dialética, na qual os atores sociais a legitimam e a reproduzem. Estas estruturas são, para o estudioso, separadas em três conceitos: o Campo, o Habitus e o Capital.

 O Campo é o espaço simbólico, caracterizado por abrigar interesses, disputas e convergências. O Habitus é a capacidade do indivíduo para incorporar a estrutura social destes Campos. O Capital é o conjunto de forças que o indivíduo acumula enquanto incorpora a estrutura e atua no Campo.

Bourdieu, então, substitui a ideia de sociedade pelo conceito de campos sociais, que possuem princípios de funcionamento. Diz ele que os conhecimentos adquiridos em um campo específico servem para interpretar outros campos, a isto chamou de teoria dos campos.

Sua obra apresenta uma tese sobre a organização interna do campo simbólico, como estrutura de um sistema de dominação. Para ele a definição de classe social, defendida por Marx, é insuficiente para interpretar a sociedade. Enquanto a tese marxista separa a sociedade em classes sociais, a partir da posse dos meios de produção, ou seja, estratifica a sociedade, a partir de um pressuposto econômico, uma materialidade objetiva, para Bourdieu, a compreensão da sociedade extrapola essa determinação, devendo ser abordada a partir da leitura das ações e relações simbólicas, nos chamados campos simbólicos.

Para Bordieu, o habitus contribui, paulatinamente, na formação do indivíduo, oferecendo-lhe, através do meio que o envolve, um conjunto de elementos que vão moldar sua forma de perceber e interpretar tudo o que o rodeia. Diz Sérgio de Miceli, na introdução de “A Economia das Trocas Simbólicas”:

Assim como o habitus adquirido através da inculturação familiar é condição primordial para a estruturação das experiências escolares, o habitus transformado pela ação escolar constitui o princípio de estruturação de todas as experiências ulteriores, incluindo desde a percepção das mensagens produzidas pela indústria cultural, até as experiências profissionais.[4]

Aplicado ao espaço eclesiástico, estes conceitos podem contribuir para a melhor compreensão de sua fenomenologia. Poderíamos dizer que o habitus incorporado pelo fiel a partir da vivência no lugar de celebração também poderá se constituir como princípio estruturante das experiências vindouras.

O campo é o lugar da ekklésia, lugar do corpo clerical e do corpo laical, cujos interesses, disputas e convergências permeiam tanto um quanto outro, bem como interesses, disputas e convergências no interior de cada campo específico.  

Neste conceito, esculpido por Bourdieu, reside precioso elemento de análise para o trabalho que ora se desenvolve. Considerando que autor define o campo como lugar do exercício de disputas e convergências, não é exagero supor que o exercício destes encontros, ora conflitivos, ora harmônicos, é condicionado, em certa medida, pela tipologia do espaço, ou seja, pela sua arquitetura.

Desse modo, pode-se deduzir que o campo é formado por duas variáveis fenomenológicas que se interpenetram: as tensões geradas pelo encontro entre os atores sociais e o espaço nos quais estas tensões acontecem. Este trabalho pretende focar nesta segunda variável do campo: o loccus, o local.

O habitus refere-se à capacidade de incorporar nas práticas cotidianas do indivíduo as experiências sentidas no espaço eclesial (campo). Desse modo, o habitus versa sobre o quanto o indivíduo é afetado, positiva ou negativamente, pelas ocorrências do campo. Poder-se-á deduzir, então, que o campo e, por conseguinte, sua variável, o espaço, influenciam na capacidade de o ator social incorporar as práticas percebidas neste mesmo espaço.

Já o capital refere-se às forças simbólicas que cada ator da Ekklésia é capaz de acumular. Pensando na dicotomia e hierarquia existente entre corpo clerical e corpo laical, percebe-se, nitidamente, a brutal diferença entre ambos os corpos no que se refere ao capital simbólico acumulado.  E esta diferença, obviamente, interfere tanto no habitus quanto no campo, afetando o equilíbrio daquilo que Bourdieu batizou de estrutural social.

No caso da Igreja, a partir da percepção de Bourdieu, a estrutura social hierarquizante, por sua vez, interfere na morfologia dos espaços eclesiásticos. Estes serão, então, o reforço desta dominante: lugares em que se realça a hierarquia, acentua-se a autoridade e se desestimula a vivência coletiva e comunitária.

Segundo Paul Radin, o monoteísmo, que consistia em uma prática rara nas sociedades primitivas, consolida-se em função da aparição de um corpo de sacerdotes solidamente organizados.[5] Esta organização e disciplina vai, paulatinamente, desequilibrando a correlação de forças existentes entre as demais expressões religiosas e o monoteísmo, favorecendo este, em detrimento daquelas.

Ao que se percebe, esta condição, determinante para a consolidação da religião monoteísta, impôs a estratificação entre o corpo clerical e os leigos, no campo simbólico (religioso). De um lado, aqueles que detém o Capital simbólico (religioso) acumulado, de outro, aqueles que são desprovidos deste capital.

E como se pôde perceber quando passamos pela abordagem histórica, durante toda a Idade Média, as próprias lideranças da Igreja estimularam esta estratificação entre leigos e clérigos, atribuindo a estes uma condição privilegiada e àqueles, um desprestígio.

Bourdieu, no capítulo Gênese e Estrutura do Campo Religioso, vai dizer:

Enquanto resultado da monopolização da gestão dos bens de salvação por um corpo de especialistas religiosos, socialmente reconhecidos como os detentores exclusivos da competência específica necessária à produção ou à reprodução de um corpus deliberadamente organizado de conhecimentos secretos (e portanto raros), a constituição de um campo religioso acompanha a desapropriação objetiva daqueles que dele são excluídos e que se transformam, por esta razão,  em leigos (ou profanos, no duplo sentido do termo) destituídos do capital religioso (enquanto trabalho simbólico acumulado) e reconhecendo a legitimidade desta desapropriação pelo simples fato de que a desconhecem enquanto tal.[6]

A dicotomia entre o corpo clerical e o conjunto dos leigos ainda se aprofunda, a partir da vinculação de outros conceitos tais como profano, magia e feitiçaria, ligados ao corpo dos leigos, e o conceito de sagrado e religião, ligados ao corpo clerical. Esta vinculação vai acentuar o abismo entre ambos os corpos no que se refere ao acúmulo do Capital simbólico/religioso. Acerca disto, vejamos o que explicita Bourdieu:

A oposição entre os detentores do monopólio da gestão do sagrado e os leigos, objetivamente definidos como profanos, no duplo sentido de ignorantes da religião e de estranhos ao sagrado e ao corpo de administradores do sagrado, constitui a base do princípio da oposição entre o sagrado e o profano e, paralelamente, entre a manipulação legítima (religião) e a manipulação profana e profanadora (magia ou feitiçaria) do sagrado, quer se trate de uma profanação objetiva (ou seja, a magia ou a feitiçaria como religião dominada), quer se trate da profanação intencional (a magia como antirreligião, ou religião invertida).[7]

Assim se consolida, ao que parece, o afastamento do conjunto dos leigos das experiências religiosas, sem que, para tanto, tenham a mediação de um ou mais clérigos. Obviamente que esta abordagem sociológica deve ser encaixada na sua contextualização histórica, como anteriormente abordado.

Entretanto, em se tratando de perceber a relação entre profano e sagrado, religião e magia/feitiçaria, e, observando-se as heranças ainda persistentes na atualidade, nota-se que há certa permeabilidade entre ambos os conceitos, que, se opondo, também se tocam.

Basta trazer à tona que as práticas de magia/feitiçaria visam objetivos concretos, específicos, parciais e imediatos, enquanto as práticas religiosas visam objetivos mais abstratos, genéricos e coletivos. Enquanto as práticas mágicas visam a coerção ou a manipulação dos poderes sobrenaturais, as práticas da religião visam a contemplação e a oração. Enquanto as práticas de magia baseiam-se no “toma lá, dá cá”, as práticas da religião visam a gratidão e o cuidado com a Casa Comum.[8]

Lendo estes conceitos, não é difícil lembrar de muitas práticas que estão circunscritas no campo da magia, mas que são recorrentemente evocadas na religião, sobretudo quando se fala em religiosidade popular. Exemplo disto: o tradicional bolo de Santo Antônio, realizado com a anuência do corpo clerical, ou mesmo o costume de se impor certo castigo à imagem do santo, até que ele atenda o pedido da candidata nubente, costume da religiosidade popular, sem, aparentemente, o patrocínio clerical.

A despeito destes conceitos se tocarem em certo momento, segundo Bourdieu, eles reforçam a tese da separação entre corpo clerical e corpo laical, acentuando o abismo hierárquico existente entre ambos.

Esta estratificação da prática religiosa (corpo clerical x corpo laical) consiste no reforço simbólico das características sociais e políticas percebidas no conjunto da sociedade, como se a prática das vivências com o sagrado consagrasse e santificasse o que se verifica tal e qual na sociedade. Como se esta violência simbólica sedimentasse o modus de ser sociedade, sobre o qual nada se pode fazer, pois se é tal como o sagrado, assim deverá permanecer. Sobre isto, Bourdieu vai dizer:

Em uma sociedade dividida em classes, a estrutura do sistema de representação e práticas religiosas próprias aos diferentes grupos ou classes, contribui para a perpetuação e para a reprodução da ordem social (no sentido de estrutura das relações estabelecidas entre os grupos e as classes) ao contribuir para consagrá-la, ou seja, sancioná-la e santificá-la. Tal sucede porque no momento mesmo em que ela se apresenta oficialmente como uma e divisa, esta estrutura se organiza em relação a duas posições polares, a saber: 1) os sistemas de práticas e de representações (religiosidade dominante) tendentes a justificar a hegemonia das classes dominantes; 2) os sistemas de práticas e representações (religiosidade dominada) tendentes a impor aos dominados  um reconhecimento da legitimidade da dominação fundada no desconhecimento do arbítrio  da dominação e dos modos de expressão simbólicos da dominação (por exemplo, o estilo de vida, bem como a religiosidade das classes dominantes), contribuindo, desta maneira, para o reforço simbólico da representação dominada do mundo político e do ethos da resignação e da renúncia diretamente inculcada pelas condições de existência.[9].

Desse modo, na perspectiva da teoria de Bourdieu, pode-se auferir que a estrutura social numa comunidade religiosa pode ser eivada de disputas, conflitos e convergências no campo simbólico e que a hegemonia em regra geral favorece àqueles que residem no campo clerical em detrimento do campo laical. E esta tensão da experiência religiosa se materializa na prática nas relações entre os atores sociais, mas também, e sobremaneira, no desenho do espaço litúrgico, ou seja, na forma como o espaço eclesial tende a realçar ou inibir este mecanismo.

Muito embora esta análise de Bourdieu seja importante, necessário se faz dialogar com a sua tese, haja vista as experiências vividas na contemporaneidade.

Desde o Movimento Litúrgico e o Concílio Vaticano II e, aqui na América Latina, desde os documentos das Conferências Episcopais Latino Americanas (Medellin, em 1968; Puebla, em 1979; Santo Domingo, em 1992 e Aparecida, em 2007), o corpo de leigos tem alcançado nova importância dentro da igreja, como “verdadeiro sujeito eclesial”.[10]

Os próprios documentos produzidos pelo corpo clerical reconhecem que “os leigos cumprirão mais cabalmente a sua missão de fazer com que a Igreja aconteça no mundo, na tarefa humana e na história”.[11] Já o documento de Santo Domingo chama os Leigos de “protagonistas da transformação da sociedade”.[12]

Mas o destaque maior é para o documento de Aparecida, que pede “maior abertura de mentalidade para que entendam e acolham o ‘ser’ e o ‘fazer’ do leigo na Igreja, que por seu Batismo e Confirmação é discípulo e missionário de Jesus Cristo”.[13]

Percebe-se, desse modo, ao menos nos documentos da Igreja aqui citados, cuja produção teórica é advinda do corpo clerical, uma inversão que aparenta colocar em xeque a tese bourdiana da estratificação entre o corpo clerical e o corpo laical. Ao menos nos documentos, o laicato tem ganhado certo protagonismo dentro da estrutura eclesiástica. 

Entretanto, o que se observa, na realidade, é a existência de filtros que obstaculizam o acesso a estes documentos por parte do povo das comunidades[14]. Estes filtros, conforme descreveu a professora Maria Angela Vilhena, são constituídos exatamente por membros do campo clerical (cardeais, bispos e padres), de tal modo que o acesso aos documentos fica comprometido.

Na prática, então, percebe-se que a realidade é mais compatível com a tese bourdiana do que com os documentos oficiais da Igreja. E isto se deve a inúmeros fatores, um dos quais, citado acima, e outro, perseguido por este trabalho: a questão morfológica, espacial, o lugar de encontro dos cristãos. A arquitetura do espaço litúrgico pode estimular ou inibir o protagonismo do leigo na igreja.

Percebe-se que a maioria dos templos religiosos são edificados para reforçar esta tese de dominação, a partir de uma luta simbólica que impõe uma definição conforme determinados interesses. O trabalho em tela ousará dialogar com este conceito sedimentado no campo religioso, propondo uma nova percepção, que poderá orientar a edificação de espaços litúrgicos cristãos na perspectiva da valorização da assembleia litúrgica cristã.

3.2 Conceito de espaço e lugar

Seria possível trabalhar o conceito de espaço/lugar sob diferentes perspectivas: físico, geográfico, virtual/cibernético, enfim, os saberes acumulados oferecem uma gama interessante de perspectivas para se abordar o sentido de espaço/lugar. Aqui escolheremos algumas abordagens que poderão ser úteis ao desenvolvimento da ideia de lugar da assembleia:

Segundo Milton Santos, o espaço é o resultado da interação do ser humano com objetos que compõe determinado ambiente. Em seu livro, “Metamorfoses do Espaço Habitado”, ele sintetiza:

O espaço seria um conjunto de objetos e de relações que se realizam sobre estes objetos; não entre estes especificamente, mas para as quais eles servem de intermediários. Os objetos ajudam a concretizar uma série de relações. O espaço é resultado da ação dos homens sobre o próprio espaço, intermediados pelos objetos, naturais e artificiais. [15]

          Milton Santos ainda busca dissociar o conceito de espaço e paisagem. Enquanto este seria uma espécie de fotografia da sociedade, um instante fixo, congelado, aquele é o resultado do dinamismo da sociedade associada à paisagem. Em suas palavras:

A paisagem é diferente do espaço. A primeira é a materialização de um instante da sociedade. Seria, numa comparação ousada, a realidade de homens fixos, parados como numa fotografia. O espaço resulta do casamento da sociedade com a paisagem. O espaço contém o movimento. Por isso, paisagem e espaço são um par dialético. Complementam-se e se opõem.[16]

Se, para Milton Santos, paisagem e espaço são elementos diversos, ao menos na obra “Metamorfoses do Espaço Habitado”, os conceitos de espaço e lugar aparecem na condição de sinônimos. Vejamos o que ele diz sobre o sentido de lugar: “O que define o lugar é exatamente uma teia de objetos e ações com causa e efeito, que forma um contexto e atinge todas as variáveis já existentes, internas; e as novas, que se vão internalizar.”.[17]

Ou seja, para Santos, tanto espaço, quando lugar possuem variáveis muito parecidas. Ambos se definem como a relação entre os objetos pertencentes a determinado meio e cuja relação produzirá novas resultantes.

O teólogo Eder Belling, na obra “Arquitetura e Liturgia”, para conceituar espaço e lugar, apoia-se na produção teórica de Tuan[18] e Bollnow[19], que apresentam a ideia de espaço vivencial/experiencial.[20]

A percepção consiste em concentrar os olhares para aquilo que pode ser experimentado e vivenciado pelo ser humano por meio de uma relação com os espaços e lugares. Bollnow afirma que não é possível analisar o espaço/lugar como se ele fosse destacado do sujeito.[21] Para ele, ambos só existem mediante a interação com o ser humano e a sociedade.

Bollnow defende que “a espacialidade da vida humana corresponde ao espaço vivenciado pelo homem (ser humano) e vice-versa, resultando numa forte ralação”,[22] uma relação fenomenológica, na qual ambos são interpenetrados e influenciados pelas contingências de cada ator, seja o espaço, seja o indivíduo.

Já para Tuan, nota-se um elemento qualificador para o conceito de lugar, em relação ao espaço. Ele afirma que o lugar é um espaço privilegiado no qual o ser humano se envolve de forma diferente. O que se percebeu como espaço, torna-se lugar, à medida em que o conhecemos melhor e o dotamos de valor[23].

E, obviamente, esta dotação de valor está condicionada à medida como os indivíduos se relacionam com os espaços, para torná-los lugar. Logo, o tipo de interação vai depender das idiossincrasias que ali se encontram, bem como da comunidade, afinal, cada pessoa e porção da sociedade interagem com o lugar a partir de suas próprias condições históricas e experiências.

 Pensemos uma residência hipotética, sob a contribuição de Yi-Fu Tuan. A edificação continuará sendo um espaço até que uma família escolha nela residir. A partir de então, e considerando as relações ali experimentadas, a residência tornar-se-á um lar, elemento qualificador da residência, que a fará deixar de ser um mero espaço para tornar-se um lugar. Ou seja: para Tuan, “residência” está para o conceito de “espaço”, assim como “lar” está para o conceito de “lugar”.

Entretanto, para qualificar a residência (espaço) como lar (lugar), não bastará residir na edificação. Será preciso acontecer uma interação afetiva, na qual surjam vínculos. Esta é condição indispensável para qualificar o espaço. Nesse processo, a residência tornar-se-á muito mais do que paredes, pisos, telhado, janelas e portas, arquitetonicamente ordenados. Ela transcenderá sua materialidade, revelando valores imateriais. O lar será, então, a extensão de quem nele habita, ou seja, o corpo da família dilatado, exibindo nas paredes aquilo que seus habitantes são.

O lar é onde se evita a hostilidade do mundo (espaço) e, por isso mesmo, o lugar do despir-se, do desvelar-se, onde o homem, a mulher e a criança encontrarão refúgio pra revelarem-se frágeis, dóceis e amorosos. Será o primeiro lugar, onde a criança se reconhece, se estabelece e se relaciona com os outros e com o mundo a partir dos lugares habitados.

Basta recuperar memórias de infância e veremos algo surpreendente: a importância da morada. Foi o lar, este lugar seguro e acolhedor, que abrigou as primeiras experiências vividas, que nos fizeram ser o que somos hoje. Sem ele, certamente, seríamos indivíduos diferentes do que somos.

Kelly Rodrigues, em seu trabalho apresentado no XI Encontro Nacional da ANPENGE – Associação Nacional de Pós Graduação em Geografia, em 2015, reflete sobre o ensinamento do geógrafo canadense Edward Relph, que conceitua o lugar como sendo fonte existencial de autoconhecimento e responsabilidade social, como microcosmo, onde os indivíduos se relacionam com o mundo e onde o mundo se relaciona com o indivíduo.[24]

Em seu trabalho, ela também traz à tona a obra de Eric Dardel que, já em 1952, foi reconhecida como a primeira obra geográfica inspirada pela fenomenologia. Dardel definia o lugar como “suporte do ser”. Vejamos:

Em nossa relação primordial com o mundo, ao nos abandonarmos às virtudes protetoras do lugar, firmamos nosso pacto secreto com a terra, expressamos por meio de nossa própria conduta, que nossa subjetividade de sujeito se encolha sobre a terra firme, se assente, ou melhor, repouse. É desse lugar, base de nossa existência, que, despertando, tomamos consciência do mundo e saímos ao seu encontro, audaciosos ou circunspectos, para trabalhá-lo.[25]

Para Dardel, o lugar é a crisálida. Será na crisálida que a lagarta se entregará às virtudes protetoras do casulo, para depois, feita borboleta sair ao encontro do mundo.

Eduardo Marandola Jr., geógrafo, doutor e professor da UNICAMP, em sua obra, “Qual o Espaço do Lugar”, nos brinda com uma reflexão de Berdoulay[26] e Entrikin[27]. Vejamos o que dizem esses pensadores:

Assim, o lugar repousa sobre a ideia de um sujeito ativo que deve, sem cessar, tecer ligações complexas que lhe dão sua identidade, ao mesmo tempo em que definem suas relações com seu ambiente. O relato fornece o meio de operacionalizar o espaço conceitual assim aberto. O lugar, como o sujeito, se institui e se exprime sobre o modo privilegiado da narrativa.[28]

          Falamos novamente em simbiose. Ao mesmo tempo em que a interação do indivíduo com o lugar molda a sua identidade, esta interação define as relações com o meio. E estas relações poderão influir de tal modo a modificar o meio, num ciclo retroafetativo.

Ana Fani, autora do livro “O Lugar no/do Mundo”, define o lugar como:

Produto das relações humanas, entre homem e natureza, tecido por relações sociais que se realizam no plano do vivido o que garante a construção de uma rede de significados e sentidos que são tecidos pela história e cultura civilizadora produzindo a identidade, posto que é aí que o homem se reconhece porque é o lugar da vida..[29]

Temos, então, para Fani, que o lugar é o resultado de uma interação entre ser humano e a natureza, resultado este que, necessariamente, impactará a identidade dos indivíduos.

O poeta francês Noël Arnaut diz que “Sou o espaço onde estou”[30]. Ora, sendo esta sentença verdade, pode-se inferir que o espaço em que se está influencia diretamente o ser. Por conseguinte, influencia a vivência em comunidade, pois a comunidade é formada por indivíduos/membros, conforme nos ensina Paulo, apóstolo para a comunidade dos primeiros cristãos em Corinto (Cor 12,12-31), já abordado, aqui, anteriormente.

Justus Dahinden, simpático à definição de espaço cunhada por Milton Santos, afirma que as características do espaço provocam efeitos no ser humano que se expõe a este espaço.[31] Desse modo, vê-se que o ambiente construído para um encontro qualquer, mas sobretudo para a reunião litúrgica, é determinante para o bom andamento dos propósitos da celebração.

Jules Michelet, filósofo e historiador francês, ao falar da arquitetura dos pássaros e da sua habilidade em construir o ninho, afirma que “a casa é a própria pessoa, sua forma e seu esforço imediato; eu diria, seu sofrimento.”[32]

Se transplantarmos a ideia do filósofo para a casa da Igreja, veremos que ela é o ninho da comunidade reunida, o aconchego para os membros do Corpo Místico de Cristo e é, exatamente, tal e qual, a somatória dos esforços dos seus membros e até de seus sofrimentos.

Então, se o lugar é um espaço vivencial e experiencial, qualificado pelas relações humanas, dotado de valor, onde o indivíduo se relaciona com a sociedade e vice-versa, atualmente, pode-se falar da existência de um não-lugar. Este seria, segundo o etnólogo e antropólogo francês Marc Augé, um espaço incapaz de dar forma a qualquer tipo de identidade, desprovidos de significados, sem um caráter relacional ou histórico, nos quais imperam a solidão e o transitório.[33]

Em geral, os não-lugares seriam espaços de transição (portos, aeroportos, rodoviárias, autoestradas), mas também espaços públicos que não possuem valor antropológico, nos quais, na maioria das vezes só coloca o indivíduo em contato consigo mesmo.[34]  Baseado nestas percepções, Augé afirma que o espaço do viajante seria, então, o arquétipo do não-lugar.[35]

Exemplo da tensão entre lugar e não-lugar se dá quando nos permitimos uma viagem longa. O retorno será sempre marcado pelo desejo do reencontro com o lugar que lhe confere identidade: sua cidade, bairro, lar. Estando na estrada, dirigindo, basta avistar, mesmo que de longe, os primeiros sinais da cidade na qual se reside, para que o indivíduo se tranquilize e relaxe. Enfim, a ânsia por chegar em casa, após a viagem de férias, por exemplo, desvela duas necessidades interessantes: primeiro, por mais prazeroso que seja uma viagem, o impacto dos não-lugares incomoda; em seguida nota-se a necessidade dos lugares para que se possa distensionar.

Entretanto, Augé afirma que a linha tênue que separa o lugar do não-lugar não existe como antes.[36] Para ele, estes espaços estão misturados, sobrepostos e interpenetrados.[37]

Vejamos os grandes centros de compras, como, por exemplo, os shoppings. Nestes não-lugares, a regra será desestimular a interação qualificadora do lugar para estimular a ação individual, acentuando a vontade de consumir das pessoas. Zigmunt Bauman, sociólogo e filósofo polonês, em sua obra “Modernidade Líquida”, afirma que:

Qualquer interação dos atores os afastaria das ações em que estão individualmente envolvidos e constituiria prejuízo, e não vantagem, para eles. Não acrescentaria nada aos prazeres de comprar e desviaria corpo e mente da tarefa.[38]

Ali é o ambiente para se consumir, não interagir, não para socializar. Qualquer situação que não seja o ato de consumir deverá ser, então, desestimulada. Inevitável não trazer à tona o fenômeno social ocorrido em vários shoppings de São Paulo em 2014. Muitos jovens, centenas deles, a esmagadora maioria sem poder de consumo, decidiram passear pelas alamedas ladeadas por ricas vitrines no interior dos shoppings[39]. Estas atividades ficaram conhecidas como “rolezinhos”. Entretanto, além de não consumirem, aqueles jovens atrapalhavam os que queriam consumir. Desse modo, os únicos indivíduos que estavam qualificando o espaço, transformando-o em um lugar, por meio de suas relações e interações, foram violentamente expulsos daquele ambiente. Sinal de que a vocação daquele espaço é ser um não-lugar.

Enfim, considerando as abordagens dos pensadores elencados e a despeito da abordagem do geógrafo Milton Santos, que considera espaço e lugar como sinônimos, esta pesquisa considerará a distinção entre espaço e lugar proposto inicialmente por Yi-Fu Tuan.

Desse modo, para efeito de leitura e interpretação deste trabalho, lugar será entendido como um espaço antropológico, dotado de valor, no qual o indivíduo e a comunidade interagem, visando qualificá-lo, tornando-o um ambiente afetivo. O opostos disto será considerado não-lugar, ambiente no qual a interação deve ser desestimulada e a impessoalidade e o individualismo potencializados.

Mais adiante discorreremos, então, acerca do lugar da assembleia litúrgica, porém, antes desenvolveremos a ideia das diferenças que coabitam os lugares.

3.3 A coexistência de diferenças não assimiladas

O ambiente antropológico, denominado lugar, no qual as pessoas interagem e que traz consigo tensões simbólicas, como já abordado no início deste capítulo a partir da contribuição de Bourdieu, é, obviamente, constituído por atores sociais bastante diferentes uns dos outros. E esta diferença, seja de qual categoria for (social, econômica, de gênero, geracional, racial), é o elemento catalizador que potencializa o aprimoramento do sentido de comunidade.

A antropóloga Teresa Pires do Rio Caldeira, na obra “Cidade de Muros, Crime, Segregação e Cidadania em São Paulo”, cunhou um termo bastante interessante que contribuirá para o desenvolvimento destes estudos. Faz uma crítica ao desenho urbano contemporâneo que estimula a segregação socioespacial, e propõe um contrapondo ao defender a necessidade de lugares que acolham a coexistência de diferenças não assimiladas[40].

Em síntese nossa autora diz que os espaços devem promover a coexistência de diferenças que jamais serão assimiladas pelos indivíduos, mas que, se tais sujeitos diversos forem estimulados a coabitarem os mesmos ambientes, tais diferenças moldarão estes mesmos sujeitos, promovendo neles a alteridade e tornando-os mais sensíveis uns aos outros. Ou seja, na medida em que as pessoas se dispõem a conviver com outras pessoas bastante diferentes de si, ambas serão lapidadas umas pelas outras, a partir daquilo que elas não possuem em si, ou seja, as diferenças não assimiladas.

Numa linguagem mais apropriada para o ambiente confessional cristão, poder-se-ia dizer que a coexistência de diferenças não assimiladas contribui para tornar as pessoas mais semelhantes a Cristo. Senão vejamos, os relatos dos Evangelhos são categóricos ao nos revelar como Jesus tratava as pessoas diferentes: sem exceção, a regra era o acolhimento. Além disso, o próprio apóstolo Paulo, ao sistematizar a teologia do Corpo Místico de Cristo (a Igreja), faz analogia bastante pedagógica comparando a Igreja ao corpo humano. E nesta comparação ele ousa desaviar nossa capacidade de ver o óbvio, lançando perguntas retóricas: o corpo é composto um só membro? Todos os membros são iguais? E assim ensina que é a diversidade dos membros que dá ao corpo importante valor (ICOr 12,12-27).

Para a comunidade cristã, a coexistência de diferenças não assimiladas é fator indispensável, pois ela contribui para conduzir o peregrino para o caminho da santidade, para torná-lo imagem e semelhança de Deus.  A convivência é fator indispensável para se combater o preconceito, para se compreender as razões alheias, para se exercitar a empatia. Na medida em que alguém é estimulado a conviver num lugar com outra pessoa bastante diferente de si, o atrito inicial que porventura surgirá será o elemento lapidador, que aparará as arestas de um e de outro, fazendo ambos sujeitos melhores. Para tanto, é preciso que a comunidade estimule a coexistência de diferenças não assimiladas, convidando as pessoas para viver esta experiência transformadora. O lugar da assembleia é, por excelência, o loccus que deve acolher este fenômeno.


[1] DREXLER, Jorge. Letras. Disponível em: <https://www.letras.mus.br/jorge-drexler/movimiento/> Acesso em: 10 fev. 2020.

[2] BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. 8. ed. São Paulo: Perspectiva, 2015, p. 33.

[3] Ibid., p. 33.

[4] BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas, p. 17.

[5] Cf. Apud Bourdieu, Pierre. A economia das trocas simbólicas, p. 37.

[6] Ibid., p. 39.

[7] Ibid., p. 43.

[8] Cf. Ibid., p. 45.

[9] BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas, p. 53.

[10] CELAM. Documento de Aparecida. Texto conclusivo da V Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe. 5. ed.  Brasília-São Paulo: Edições CNBB-Paulinas-Paulus 2008, p. 497.

[11] CELAM. Movimento de Leigos. In: II Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano. Conclusões de Medellin. Petrópolis: Vozes, 1970, 10.

[12] CELAM. IV Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano. Conclusões de Santo Domingo. São Paulo: Loyola, 1992, 98.

[13] CELAM. Documento de Aparecida, p. 213.

[14] Cf. VILHENA, Maria Angela. A religiosidade Popular à luz do Concílio Vaticano II. São Paulo: Paulus, 2015, p. 103.

[15] SANTOS, Milton. Metamorfoses do espaço habitado: fundamentos teóricos e metodológicos da geografia. Hucitec, São Paulo, 1988, p. 25.

[16] Ibid., p. 25.

[17] Ibid., p. 97.

[18] Yi-Fu Tuan é geógrafo sino-americano, autor de “Espaço e Lugar: a perspectiva da experiência” (São Paulo: Difel, 1983).

[19] Otto Friedrich Bollnow arquiteto, pedagogo e filósofo alemão, autor de “O homem e o espaço” (Curitiba: UFPR, 2008).

[20] Cf. Apud BELING, Eder. Arquitetura e Liturgia: espaço, arte e fé no lugar de culto. Porto Alegre: Livraria Fi, 2019, p. 45.

[21] Cf. Ibid., p. 46.

[22] Ibid., p. 47.

[23] Cf. Ibid., p. 51.

[24] Cf. RODRIGUES, Kelly. O conceito de Lugar: a aproximação da geografia com o indivíduo. In: Anais XI Encontro Nacional da ANPEGE (Associação Nacional de Pós-Graduação em Geografia). Presidente Prudente-SP, 2015

[25] Cf. Ibid., p. 04.

[26] Vicent Berdoulay, geógrafo, doutor pela universidade da Califórnia, coautor da obra “Lugar e Sujeito”.

[27] John Nicholas Entrikin, geógrafo, professor da universidade de Notre Damme, coautor da obra “Lugar e Sujeito”.

[28] Apud RODRIGUES, Kelly. O conceito de Lugar, p. 09.

[29] Apud MARANDOLA JR, Eduardo et al. Qual o espaço do lugar?: geografia, epistemologia, fenomenologia. São Paulo: Perspectiva, 2012, p. 307.

[30] Apud BACHELARD, Gaston. A poética do Espaço. 2. ed. São Paulo, Martins Fontes, 2008, p. 146.

[31] Cf. RICHTER, Klemens. Espaços de Igrejas e imagens de Igrejas, p. 27.

[32] Apud BACHELARD, Gaston. A poética do Espaço, p. 113.

[33] Cf. MARTINS, Raquel Monteiro. A Ideia de Lugar, um olhar atento às obras de Siza. Coimbra: FCTUC, 2009.

[34] Cf. BELING, Eder. Arquitetura e Liturgia: espaço, arte e fé no lugar de culto, p. 93.

[35] Cf. Ibid., p. 94.

[36] Cf. Ibid., p. 95.

[37] Cf. Ibid., p. 95.

[38] BAUMAN, Zigmunt, Modernidade Líquida, Rio de Janeiro: Zahar, 2001, p. 114.

[39] Cf. PINTO, Tales dos Santos. Rolezinhos e discriminação social. Brasil Escola. Disponível em: <https://brasilescola.uol.com.br/historiab/rolezinhos-discriminacao-social.htm>. Acesso em: 10 fev. 2020.

[40] CALDEIRA, Teresa Pires do Rio. Cidade de muros: Crime, segregação e cidadania em São Paulo. São Paulo: Edusp, 2000. p. 308.

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