A MORFOLOGIA DO LUGAR DA ASSEMBLEIA E SUA
CORRELAÇÃO COM O SENTIDO DE CRISTO TOTAL
Capítulo segundo
QUESTÕES TEOLÓGICAS
Quem ama, faz sempre comunidade;
não fica nunca sozinho.
(Atribuído a Santa Tereza d’Ávila)[1]
Neste capítulo, trataremos da formulação da teologia do Corpo Místico de Cristo (Cristo Total), proposta por Paulo de Tarso ao animar as comunidades da diáspora, fundadas ou cuidadas pastoralmente por ele. Notaremos íntima ligação com a primeira parte do capítulo anterior, por razões obvias: Paulo foi um dos principais líderes das primeiras comunidades, das quais somos herdeiros.
Na sequência, abordaremos a relação entre assembleia litúrgica e comunidade cristã, terminologias que, embora, nos primórdios, fossem consideradas sinônimos, são, atualmente, conceitos distintos.
2.1 A contribuição da Teologia Paulina
Se fosse possível perguntar hoje ao apóstolo Paulo de Tarso onde está, para ele, o Cristo, provavelmente ele responderia: Cristo está na comunidade reunida em oração. Carlos Ortiz, nas primeiras páginas da obra “O Christo Total”, defende que o cristianismo é uma vida, um Corpo, o Corpo Místico de Cristo, a Igreja.[2]
Esta capacidade abstrativa é a base do principal eixo da Teologia Paulina e se ancora na ideia teológica do Corpo Místico de Cristo. Paulo, entretanto, só foi capaz de alcançar este nível de percepção acerca do Mistério Salvífico por razões muito práticas, dentre as quais pode-se arriscar duas: o fato de ele não ter conhecido Jesus pessoalmente e o desmoronamento de suas convicções pessoais, quando a caminho de Damasco.
Paulo foi o mais prolixo escritor do Novo Testamento, responsável por 13 dos 27 livros, tendo ainda, no Atos dos Apóstolos, o registro sua trajetória e alguns sermões. Segundo Reza Aslan, Lucas escreveu o livro do Atos dos Apóstolos em homenagem a Paulo, 30 ou 40 anos após a sua morte. Segundo ele, na narrativa, os apóstolos, que figuram somente no início do livro, servem apenas de ponte entre Jesus e Paulo[3].
E ainda é muito provável que Paulo influenciou a escrita dos evangelhos[4]. Segundo Aslan, à exceção da fonte Q, as cartas paulinas eram os únicos escritos sobre Jesus que existiam em meados do ano 70, momento em que os evangelhos começam ser escritos. Estas cartas, que circulavam desde os anos 50, resistiram à guerra judaica e à destruição de Jerusalém, pois estavam em poder das comunidades da diáspora, fundadas e/ou mantidas por Paulo.[5] Nosso autor afirma que:
Pode-se traçar a sombra teológica paulina em Marcos e Mateus. Mas é no evangelho de Lucas, escrito por um dos discípulos fiéis de Paulo, que se pode ver o domínio de seus pontos de vista, enquanto que o evangelho de João é pouco mais que a teologia paulina em forma de narrativa.[6]
Paulo era um cidadão cosmopolita, tendo sido influenciado por três culturas distintas: a hebraica, a romana e a grega. Tal amalgama certamente contribuiu para a formação de sua teologia. Dos muitos conceitos para a doutrina cristã que Paulo esculpiu e cristalizou, este trabalho concentrará atenção num deles, talvez o principal, que será fundamental para o desenvolver da tese aqui pretendida: a ideia de Corpo Místico de Cristo.
Carlos Ortiz sugere que, para se compreender Paulo, antes é necessário compreender a doutrina do Corpo Místico[7]. E, para se compreender a aludida doutrina, é preciso, antes, mergulhar na experiência mística que desencadeou este magnífico tratado de fé.
Lembremos que entre os anos 34 ou 35 da era cristã, na Síria, vivia Paulo, que, então, chamava-se Saulo. Ele possuía documentos do Sinédrio autorizando-o a prender todos os adeptos do nazareno, homens, mulheres e crianças. Ele era uma espécie de inquisidor mor, ardoroso defensor das tradições judaicas. Podia invadir casas, impor buscas e devassas, utilizando-se de torturas e instrumentos de suplício. Os poucos cristãos viviam às escondidas, temendo tais perseguições.
Após a execução do nazareno Estevão, Saulo intensifica seu furor. Sabia ele que o foco principal do radicalismo pró-Nazareno era em Damasco. Decidiu, então, rumar para tal cidade, a fim de aniquilar aquele movimento insurgente. Ocorre que, como sabemos pela tradição, no caminho, Saulo jaz por terra, mediante uma luz intensa que o cega[8]. E no meio de completa escuridão em dia límpido, ele escuta como um trovão em céu azul, chamamentos pelo seu nome: “Saulo, Saulo!” Em seguida, uma pergunta inquisidora: “Porque me persegues?”[9] Ainda atordoado, ele ousa perguntar: “quem és tu, Senhor”?[10] A resposta é fatal, fazendo desmoronar todas as convicções daquele doutor. Não poderia haver outra alegoria para indicar sua afetação: Saulo caiu por terra. Ali, a voz categórica responde: “eu sou Jesus, a quem você persegue!”[11] Esta resposta atordoa Saulo, impondo-lhe uma tragédia pessoal e aniquilando seus planos de defender a tradição judaica, apontando a espada aos que dela discordassem. Naquele momento desmoronou o frondoso edifício da tradição judaica para Paulo e sobre tais ruínas seriam edificadas o cristianismo paulino e sua esplendorosa teologia acerca dos princípios cristãos.
Importa adjetivar o cristianismo que será proposto, pois segundo Reza Aslan, havia dois grupos distintos de seguidores do Nazareno.[12] Os cristãos hebreus, um grupo nacionalista, ligado à tradição judaica, no qual estavam inseridos os apóstolos Pedro e Thiago e os cristãos helenistas que tensionavam para que a mensagem de Jesus se tornasse um chamado universal atraente aos que viviam no ambiente greco-romano. Neste grupo de cristãos, notadamente estavam Estevão, o primeiro mártir, e Saulo/Paulo. A tensão entre estes grupos pode ser percebida no livro do Atos dos Apóstolos, que descreve o primeiro concílio (Atos dos Apóstolos 15,1-20).
O processo de formação da teologia paulina se deu a partir dos métodos filosóficos conhecidos por aquele estudioso. Não aceitando as respostas imediatas, quis ele indagar. Saulo então se pergunta como seria possível ele perseguir a Cristo se Ele já estava morto, há tempos, talvez anos. Ele obviamente perseguia os discípulos do nazareno e não o próprio. Mas Jesus afirma que Saulo persegue a Ele em pessoa. Como seria possível? A tradição diz que três dias de cegueira foram necessários, nos quais ele não comeu nem bebeu absolutamente nada. Dias de deserto, de uma experiência ruminante na qual aquela frase ecoaria, a fim de produzir bela teologia cristã. Saulo então percebeu que só haveria um caminho possível para compreender o que ele escutara. Jesus e seus amigos são um e o mesmo. De tal modo que quando se persegue um discípulo do Nazareno se persegue Ele próprio. Quando se mata um cristão, se mata o próprio Cristo. Então, Cristo é nada menos que os seus discípulos missionários. Eis a fagulha que desencadeou todo o magnífico ardor de sua teologia. Imediatamente, Saulo encontrou Ananias, um discípulo de Jesus, que o batizou, dando-lhe o nome de Paulo. Então, de perseguidor dos cristãos ele tornou-se um deles. Um arauto de importância única para a consolidação do cristianismo tal como o conhecemos hoje. Um cristianismo predominantemente influenciado pelas ideias helenistas dos cristãos do primeiro século.
Paulo viajava, formava comunidades cristãs nas mais longínquas terras e escrevia, buscando, com as cartas, animar as comunidades. E, enquanto escrevia, ele aprimorava sua teologia, de tal modo que, o que temos hoje é um interessante tratado acerca do cristianismo.
O apóstolo dos gentios ofereceu inúmeras passagens nas quais faz alusão a assembleias litúrgicas nas casas dos neocristãos. A mais significativa encontra-se na primeira Carta aos Coríntios. Martin Mcnamara sugere que as informações mais completas sobre as assembleias cristãs do primeiro século vêm de Corinto, por conta de haver ali muito o que remediar.[13] Em Corinto, a Eucaristia era celebrada numa refeição tomada por todos (1Cor 11,17-27). Entretanto, havia se formado grupos e castas segundo a condição econômica dos membros. Durante as refeições, estes grupos comiam os seus alimentos sem se preocuparem com os outros, sem esperar que todos tivessem chegado, sem se preocupar com os mais pobres. Uns tinham uma refeição farta, enquanto outros não comiam o suficiente. Diante disso, Paulo alerta a comunidade, afirmando de forma contundente que esta prática quebra a unidade da assembleia e por conseguinte destrói o Corpo de Cristo. Paulo, então, deixa claro que a assembleia não é uma reunião qualquer, é o Corpo de Cristo, o Corpo Total, e todo atentado contra a assembleia é atentado contra o Corpo do Senhor.
Com relação à comunidade dos Hebreus, cujos membros eram negligentes em participar das assembleias e costumavam abandoná-las antes do término, Paulo corrige com severidade e ensina que a comunhão na fé com os outros crentes é condição de salvação. Ou seja, ele é categórico: não existe cristianismo do eu-sozinho. A condição de salvação é o eu-nós. Para Paulo, de nada serve uma experiência mistagógica fundada no individualismo, podendo até haver, mas não poderá ser chamada de cristianismo. Em Cristo só há um caminho: integrar-se ao Corpo Místico, viver esta experiência na e com a comunidade.
Para os Gálatas, Paulo enfatiza que não é ele mais quem vive, mas Cristo vive nele (Gl 2-19), fazendo clara alusão ao sentido de ressureição: Cristo vive nele e nos demais membros da comunidade que professam seus princípios.
Para os Colossenses pretende contribuir para que cada ser humano seja perfeito em Cristo (Col 1-28), ou seja, que estando membro do Corpo Místico de Cristo, alcance a perfeição, tal como um membro não pode crescer e se desenvolver fora do corpo, Paulo avisa que só é possível tornar-se perfeito estando N’Ele.
Mas de todas as mensagens a mais extraordinária foi destinada à comunidade de Corinto. Temendo perseguições, os primeiros cristãos não se encontravam em locais públicos. Seus ambientes de encontro eram, primeiramente, as catacumbas, cujos símbolo é poderoso: discípulos de um Deus que passou pela morte. Depois se reuniam em residências da época. Em Corinto, a comunidade cristã se reunião na casa de Estéfanas (1Cor 16,15 e 1Cor1,16).
Para aquela comunidade, Paulo então encaminha uma carta contendo a explicação da teologia do corpo místico. Entretanto, e considerando que, segundo McNamara, aquela comunidade exigia mais atenção, provavelmente devido à dificuldade de Corinto em compreender os ensinamentos propostos, o apóstolo elabora uma analogia simples, impossível de não ser compreendida. De forma didática ele compara a comunidade de Corinto ao corpo humano para, na sequência, concluir que a comunidade reunida é o Corpo de Cristo, o Corpo Místico de Cristo. (1Cor 12,12-17). Se um membro sofre, todo o corpo padece junto. Se um membro se alegra, todos os membros se animam, os membros que parecem mais frágeis são os mais importantes. Da mesma forma que não existe corpo formado somente por pés, ou somente por orelhas, mas sim pela diversidade qualitativa dos membros, assim será com a comunidade.
A doutrina de Paulo apóstolo é cristalina: não somos pessoas isoladas, mas membros de um grande corpo, o Corpo Místico de Cristo, a Igreja. E tal como membros de um corpo, não é possível crescer e se desenvolver separadamente do corpo, pois somente beberemos da seiva vital se conectados ao corpo. Separados, não há vida, apenas morte!
E de onde Paulo, o apóstolo do Corpo Místico, extraiu esta ideia? Sabe-se que sua revelação no caminho de Damasco é a centelha inicial, mas o que mais poderia ancorar belíssima teologia? Carlos Ortiz enxerga uma conexão entre a Teologia Paulina e o Evangelho.[14] Provavelmente, Paulo tenha recebido, por meio da tradição oral, o relato da parábola da videira, ensinada por Jesus. (Jo15-1 ss). Nesta parábola, Jesus afirma ser a verdadeira videira, todo aquele que estiver conectado a ele dará frutos.
Santo Agostinho faz clara ligação entre esta parábola e a doutrina do Corpo Místico. Diz ele que “este lugar do evangelho, irmãos, onde o Senhor se diz a videira e os seus discípulos os ramos, Ele o diz enquanto é a cabeça da Igreja e nós os seus membros.”.[15] Desse modo, diz Carlos Ortiz:
Como só vivem os ramos enxertados na videira; como só vivem os membros articulados organicamente no corpo; assim só vive o cristão enxertado no tronco que é Cristo, articulado no Corpo Místico de Cristo, a Igreja. A vida dos ramos da videira é a seiva. A vida dos membros do corpo é o sangue. A vida do cristão, enxertado e incorporado a Cristo é a graça santificante do seu batismo.[16]
A analogia é perfeita. Só se é possível viver como cristão vinculados, enxertados na comunidade, não há caminho fora destas duas alegorias, tanto a ideia da videira, quando a ideia do Corpo Místico de Cristo, indicam um inevitável caminho: a vida em comunidade. Santo Agostinho propõe uma sentença radical e muito didática:
Façam-se Corpo de Cristo aqueles que querem viver do Espírito de Cristo. Só vive do Espírito de Cristo, o Corpo de Cristo. Por ventura o meu corpo vive do teu espírito? Meu corpo vive do meu espírito e o teu do teu espírito.[17]
Assim, para se experimentar o Espirito Santo é necessário estar vinculado ao corpo, ao Corpo Místico, à Igreja. Faz-se necessário neste momento lembrar o Pentecostes: o sopro e as línguas de fogo, sinais do Espírito Santo, enchem toda a casa onde se encontravam reunidos os apóstolos, ou seja, a Igreja (Atos dos Apóstolos 2,1). Não houve uma experiência individual, cada qual em seu momento íntimo, mas sim um encontro que só pode acontecer por meio da Igreja, por meio do Corpo Místico, da união dos membros.
Mais tarde os Padres da Igreja[18] também contribuíram para o aperfeiçoamento da doutrina do Corpo Místico. São Cyrillo de Alexandria propõe a seguinte analogia: “assim como a cera se mistura com a cera, o fermento com o pão, assim nós com o Corpo de Cristo”[19]. Já Cyrillo de Jesuralém afirma que “na sagrada comunhão não só nos fazemos cristíferos, mas corpóreos e consanguíneos de Cristo”.[20]
Desde a era apostólica e conforme as prescrições do Novo Testamento, a Didaké[21] ensina que se devem reunir os cristãos para partir o pão e dar graças. Ignácio de Antioquia frequentemente lembra desta obrigação e pede que se reúnam com mais frequência para dar ações de graças e louvores a Deus.
A assembleia é então o sacramento da unidade. A Didascália Siríaca[22] orienta a ensinar:
o povo, através de preceitos e exortações, a frequentar a assembleia e a jamais faltar a ela, que todos se encontrem sempre presentes, que não diminuam a igreja pela sua ausência, e que não privem o Corpo de Cristo de nenhum dos seus membros.[23]
Um dos princípios teológicos que alicerçam a celebração pascal, contidas nas reflexões do Concílio Vaticano II, refere-se ao Cristo Total como sujeito “da ação litúrgica”. Assim, o sujeito da ação litúrgica é a assembleia reunida como Povo de Deus. Cristo Total, aqui mencionado, é sinônimo de Corpo Místico de Cristo.
Já, em 1918, Romano Guardini, filósofo e teólogo dizia “a liturgia apoia-se não no indivíduo, mas na comunidade dos fiéis”.[24] Bebendo ainda na fonte da doutrina paulina, o Papa Paulo VI, na encíclica Mysterium Fidei, reforça o ensinamento contido na Sacrosanctum Concilium. Diz ele que, sobre os modos de presença do Senhor na sua Igreja, ocupa o primeiro lugar a assembleia em oração, sobretudo na celebração eucarística.[25]
Jean Corbon, teólogo da Igreja primitiva, autor da parte sobre liturgia do catecismo da Igreja Católica, diz que “o Espírito Santo nos doa a vida de Deus, constituindo-nos Corpo de Cristo”.[26] Marko Ivan Rupnik, por ocasião do 11º Encontro Nacional de Arquitetura e Arte Sacra, ocorrido em 2017, na cidade de Curitiba-PR, afirmou que:
Perguntem aos católicos: como vocês imaginam que Deus lhe dá a vida? E vocês vão ver que a maioria imagina um tanque de gasolina: esvazia e enche. Não é assim, pois a vida divina não é individual, é a vida de um eu filial, de comunhão. Então, eu recebo a vida de Deus quando descubro que sou tecido em um tecido junto aos outros, e onde este tecido se acha perfeito: em Cristo![27]
Santo Agostinho defende que, quando nos aproximamos da comunhão e o padre nos diz “o corpo de Cristo”, pode-se responder ”sim, isto sou eu”, depois, “amém” e então comungar.[28] Rupnik diz, ainda, que o cristão é realmente o corpo de Cristo e deve viver segundo esta manifestação.[29]
Percebe-se, portanto, a grandiosa e importante contribuição dada pelo apóstolo Paulo para a consolidação do cristianismo tanto em suas viagens apostólicas, nas quais se difundiu os princípios ensinados por Cristo, mas, sobretudo e de modo principal, com o legado teológico do qual somos herdeiros. Para Paulo, a comunidade reunida é o Corpo de Cristo. Para Paulo, todos os membros, inclusive os aparentemente mais frágeis, são os mais importantes. Para ele, a alegria de um deve ser partilhada por todos, da mesma forma com a tristeza.
O desafio, então, é conceber um espaço que promova e não iniba a vivência destes princípios.
2.2 Assembleia litúrgica e comunidade cristã
Neste item, buscaremos compreender o sentido consolidado destes dois conceitos e a simbiose percebida entre ambos.
Segundo o sociólogo Jean Remy, “a comunidade supõe normalmente um território no interior do qual o indivíduo encontra condições para atender às suas necessidades diversas e aspirações pessoais”.[30] Várias realidades sociais são modelos disto, dentre as quais podemos perceber as comunidades cristãs. Nelas, acontece, ou pelo menos deveria acontecer, as seguintes práticas: o cuidado com o outro, a ajuda mútua, a partilha das alegrias e sofrimentos, enfim, o exercício da compaixão. Bauman afirma que:
Nenhum agregado de seres humanos é sentido como comunidade, a menos que seja bem tecido de biografias compartilhadas ao longo de uma história duradoura e uma expectativa ainda mais longa de interação frequente e intensa[31]
Já a assembleia litúrgica, segundo a definição de Joseph Gelineau, liturgista francês, é constituída por indivíduos que se reúnem num determinado lugar para realizar uma tarefa específica: celebrar o Mistério Pascal de Cristo, na expectativa da realização da nossa própria páscoa. A assembleia litúrgica nunca reúne todos os membros da comunidade, mas está aberta a todos, mesmo para os que não pertencem àquela comunidade. A assembleia é situada num território, mas não é territorial. Diferentemente da comunidade cristã, a assembleia atua de modo episódico e passageiro[32].
Mas, em uma relação de simbiose, assembleia e comunidade se interpenetram, retroalimentando afetações. Na medida em que é necessária a presença de uma comunidade consolidada para o apoio aos serviços da assembleia litúrgica, a própria assembleia deve estimular o desenvolvimento entre os cristãos de relações comunitárias. Sob a forma do agir simbólico da liturgia, propõe-se provocações que orientam a vida concreta da comunidade. A ação simbólica da partilha do pão na liturgia denuncia as práticas não comunitárias vividas no cotidiano. Joseph Gelineau vai dizer que “é uma contradição comungar na assembleia litúrgica sem colocar nada em comum”.[33]
É evidente que a imensa maioria dos cristãos escolhem apenas a participação nas assembleias litúrgicas em detrimento da vida em comunidade. A única centelha de vida eclesial habitual para a grande maioria é a assembleia orante. Por esta razão, o encontro pascal semanal desempenha papel decisivo para a experiência cristã, mas este não pode ser um fim em si mesmo, devendo impelir o cristão a alcançar o nível de vivência em comunidade. Para alcançar este intento, Gelineau vai sugerir que “as assembleias devam ampliar suas funções e modificar sua fisionomia”.[34]
Pretendendo aprofundar as provocações do liturgista francês, este ensaio buscará concentrar os esforços para mostrar que a morfologia do espaço litúrgico é determinante para esta pretensão. O desenho do lugar do encontro pascal poderá afastar as pessoas da experiência de vivência em comunidade ou aproximá-las desta dimensão inevitável para quem se pretende cristão.
Como se depreende da própria catequese, a revelação divina se dá por meio de uma comunidade, a trindade santa. Deus escolhe se revelar ao povo via comunidade. Ora, se o próprio Deus não é individual, mas sim comunidade, não é razoável pensar numa experiência mistagógica cristã que descarte a vivência em comunidade, centrando a mística em costumes e práticas individualistas. Em síntese, o que se pretende dizer é que não é possível haver prática cristã dissociada da vivência em comunidade.
Gelineau ainda critica o fato de, em sua opinião, as assembleias litúrgicas atuais serem exclusivamente cultuais. Lembra-nos das vivências dos cristãos do primeiro século, que se reuniam predominantemente em assembleias, mas estas tinham um sentido mais abrangente, para além da experiência apenas cultual.
Como já visto no início desta monografia, quando abordamos a evolução histórica, os primeiros cristãos se reuniam com frequência, para a didascália, o ensinamento dos apóstolos, o que, para nós, hoje, seria a escuta do Evangelho; para a koinonia, o que pode ser entendido por caridade fraterna (entre eles não havia necessitado algum, pois viviam a partilha dos bens), o que ficou mais tarde sintetizado na Eucaristia e, por fim, a oração. As assembleias primitivas, então, garantiam tudo o que era necessário para a vida em comunidade, sobretudo o cuidado para que entre eles não houvesse necessitados. Não era possível perceber assembleias puramente cultuais. Nota-se, então, neste lapso temporal, conhecido como período da igreja dos mártires, que provavelmente vigorou até o século IV, que o conceito de assembleia litúrgica e comunidade cristã possuíam o mesmo significado, não havendo distinção entre ambos.
Foi após a paz constantiniana e a consequente imposição do cristianismo como religião oficial do império, pelo imperador Teodósio I, que esta configuração começou a mudar. Devido ao aumento exponencial do número de cristãos, as características originais das assembleias foram sendo abandonadas, dando lugar ao encontro cultual, sem a dimensão prática da caridade e fraternidade, que consolidava o sentido de comunidade.
A partir de então, o povo deixou de ser o sujeito principal da celebração, dando lugar a uma clericalizarão capitaneada pelos monges cenobitas que realizavam os ofícios cotidianos e os serviços ministeriais.[35] Vejamos o que diz Joseph Gelineau ao abordar o período da Idade Média:
Durante toda a Idade Média – pelo menos no Ocidente, já que a evolução das Igrejas do Oriente foi diferente – a piedade do povo não parece alimentar-se da liturgia. Comungava-se cada vez menos. Os clérigos e os cantores absorvem as cerimônias, enquanto que o povo fica fora do presbitério separado pela tribuna que corta a Igreja em duas zonas.[36]
Antes da paz constantiniana, o corpo clerical e o corpo laical viviam em maior harmonia, entretanto, após os Éditos de Milão e de Tessalônica, aconteceu, como já descrito, a separação entre clérigos e leigos, como relatado por Gelineau.
O que se percebe então é que a oficialização do cristianismo como religião do império impôs aos cristãos uma mudança de paradigma. Se antes as assembleias litúrgicas eram a expressão ideal da comunidade cristã, depois dos Éditos, as assembleias se tornaram meramente cultuais, perdendo sua característica essencial: a caridade, a piedade e a catequese.
Como agravante, notou-se a separação da assembleia entre povo e clero, que se organizaram em campos simbólicos distintos. E esta separação impôs uma correlação de forças simbólicas entre ambos os campos, desproporcional e prejudicial ao conjunto dos leigos, como poderá ser melhor debatido quando da abordagem sociológica, mais adiante. O fato é que, justamente, o ente principal da vida eclesial ficou relegado à importância secundária.
A era dos rubricistas[37], após o Concílio de Trento, acentuou esta separação. Os ritos sagrados e as demais atividades cristãs de caridade, ensino e piedade estavam dissociados, o que reforçou a ideia de assembleias litúrgicas apenas cultuais, negando-se sua característica comunitária.
Somente com o Concílio Vaticano II, como já vimos, a Igreja buscou iniciar um processo paulatino de reequilíbrio, busca que, atualmente, ainda se encontra aquém do necessário para a retomada do sentido original dado às assembleias litúrgicas dos primeiros séculos.
Aimé G. Martimort[38] persegue a ideia de simbiose entre assembleia litúrgica e comunidade cristã verificada no cristianismo primitivo. Ele aponta a fundamental diferença entre uma reunião qualquer de pessoas e a verdadeira comunidade. Para que um conjunto de pessoas seja, de fato, uma comunidade cristã, é preciso estarem unidos pela fé e pela caridade.[39] E ele adianta que isto se promove na medida em que “el pueblo reunido en asamblea tome conciencia de su comunidade”.[40] Por isso, segundo ele, é muito importante que a celebrações promovam esta realidade através da visão, da audição, dos gestos, dos cantos, das aclamações[41] e, aqui, tomamos a liberdade para acrescentar a importância do espaço litúrgico para que as pessoas se percebam membros ativos da comunidade eclesial que se reúne para o Banquete. O lugar da assembleia e sua tipologia pode promover ou comprometer a vivência dos valores que caracterizam uma comunidade cristã.
Certamente, nunca se conseguirá retomar aquela característica original das primeiras assembleias orantes, nem deverá ser esta a pretensão, mas tê-las como meta pode ser um propósito interessante, a fim de se alcançar a aproximação do sentido da assembleia-comunidade, reequilibrando suas funções de “viver juntos como Igreja”.[42]
A arquitetura do espaço litúrgico, sem sombra de dúvida, tem papel importante nesta busca. Pode-se edificar uma igreja que promova o encontro ou uma igreja que estimule as orações individuais, desconectadas da vivência comunitária e, por conseguinte, desconectadas dos princípios do cristianismo.
[1] D’ÁVILA, Santa Teresa. Pensador. Disponível em: <https://www.pensador.com/frase/MTQ5ODg4Nw/> Acesso em: fev de 2020.
[2] Cf. ORTIZ, Carlos. O Christo Total: Ensaio de uma syntese christã para militantes da Acção Católica, São Paulo: Odeon, 1937, p. 11.
[3] Cf. ASLAN, Reza. Zelota: A vida e a época de Jesus de Nazaré, Rio de Janeiro:Zahar, 2013, p. 202.
[4] Cf. Ibid., p. 232.
[5] Cf. Ibid., p. 232.
[6] Ibid., p. 232.
[7] Cf. ORTIZ, Carlos. O Christo Total: Ensaio de uma syntese christã para militantes da Acção Católica, p. 15.
[8] Cf. At 9,3.
[9] At 9,4.
[10] At 9,5.
[11] At 9,5.
[12] Cf. ASLAN, Reza. Zelota: A vida e a época de Jesus de Nazaré, p. 199.
[13] Cf. MCNAMARA, Martin. As assembléias litúrgicas e o culto religioso dos cristãos primitivos. Concilium, Petrópolis, n.002, jun-dez 1969, p. 19.
[14] Cf. ORTIZ, Carlos. O Christo Total, p. 18.
[15] Ibid., p. 18.
[16] Ibid., p. 18.
[17] Ibid., p. 25.
[18] Os Padres de Igreja, ao longo dos sete primeiros séculos, elaboraram uma filosofia cristã denominada Patrística. Foram os primeiros teóricos que formularam um conjunto doutrinal que está na base da tradição católica.
[19] ORTIZ, Carlos. O Christo Total, p. 56.
[20] Ibid., p. 59.
[21] Didaké é a Instrução dos Doze Apóstolos, um escrito do século I que trata do catecismo cristão. É constituído de dezesseis capítulos, e, apesar de ser uma obra pequena, é de grande valor histórico e teológico.
[22] Didascália siríaca: Conjunto de orientações e ensinamentos do catecismo na Síria.
[23] Concilium, Revista Internacional de Teologia,A Assembleia Litúrgica, p. 17.
[24] Apud 53º Assembleia Geral da CNBB, artigo Liturgia e Vida, p. 4.
[25] Cf. MORAES, Francisco Figueiredo de. Espaço do Culto. Á imagem da Igreja. São Paulo: Loyola, 2009, p. 52.
[26] RUPNIK, Marko Ivan. A arte como expressão da vida litúrgica. Brasília: Edições CNBB, 2019, p. 205.
[27] Ibid., p. 206.
[28] Cf. Ibid., p. 212.
[29] Cf. Ibid., p. 212.
[30] Apud GELINEAU, Joseph. O amanhã da liturgia. Ensaio sobre a evolução das assembleias litúrgicas. São Paulo: Paulinas, 1977, p. 60.
[31] BAUMAN, Zygmunt. Comunidade: a busca por segurança no mundo atual. Rio de Janeiro: Jorge Zahar 2003, p. 48.
[32] Cf. GELINEAU, Joseph. O amanhã da liturgia, p. 61.
[33] Ibid., p. 63.
[34] GELINEAU, Joseph. O amanhã da liturgia, p. 64.
[35] Cf. GELINEAU, Joseph. O amanhã da liturgia, p. 26.
[36] Ibid., p. 26.
[37] A Era dos Rubricistas iniciou-se com a Sagrada Congregação dos Ritos, criada pelo papa Sisto V, que tinha a missão de vigiar o cumprimento das prescrições contidas nos livros litúrgicos e demais documentos advindos das reflexões posteriores ao Concílio de Trento. Neste período a prática da liturgia se reduziu ao rubricismo (legalismo), ao esteticismo e ao devocionismo, fruto de um abandono da teologia que tornou a liturgia pomposa e vazia e acentuando o distanciamento entre o clero e o povo.
[38] Aimé Georges Martimort, padre francês, da cidade de Toulose, considerado grande teólogo sobre o sentido da assembleia. Foi pioneiro nesta temática, com a publicação L’assemblée liturgique, na edição número 20 da La Maison Dieu, em 1949.
[39] Cf. González Padrós, Jaume. La asamblea litúrgica es un signo, p. 240.
[40] Ibid., p. 240.