A MORFOLOGIA DO LUGAR DA ASSEMBLEIA E SUA
CORRELAÇÃO COM O SENTIDO DE CRISTO TOTAL

Capítulo primeiro

EVOLUÇÃO HISTÓRICA DAS ASSEMBLEIAS LITÚRGICAS CRISTÃS

As coisas mudam no devagar depressa dos tempos.

(Guimarães Rosa).[1]

Neste capítulo, traçaremos uma linha evolutiva das assembleias cristãs. Partindo das primeiras comunidades, veremos a expansão do cristianismo no século III, a clericalizarão e o distanciamento da comunidade das celebrações que vigorou em toda a Idade Média, até chegarmos ao resgate da herança das primeiras comunidades, proposto pelo movimento litúrgico, com desfecho no Concílio Vaticano II.

1.1 Das primeiras comunidades ao Concílio Vaticano II

Não é possível se falar em arquitetura cristã na era do cristianismo primitivo, nos três primeiros séculos. Isto se dá em razão de que os encontros neste período ocorriam em residências cedidas por seguidores e suas famílias. Por conseguinte, também não é possível encontrar elementos que contribuam para uma análise do espaço litúrgico dentro da perspectiva deste estudo.

O que se pode auferir, baseado nas pesquisas existentes e nos registros neotestamentários, é sobre a liturgia existente nestes encontros. E, a partir destas referências, buscar compreender o espaço nos quais os cristãos se encontravam.

Considerando que os evangelhos foram redigidos entre os anos 70 e 100, a partir de diversas fontes, como a fonte Q[2], por exemplo, a partir de saberes transmitidos pela tradição oral e considerando, ainda, que neste período as comunidades já se reuniam costumeiramente para celebrar, é bastante plausível que a concepção do conteúdo dos evangelhos e a vivência litúrgica das primeiras comunidades tenham acontecido em simbiose: uma interdependente da outra.  Xabier Basurko defende que: “a Bíblia foi o primeiro livro litúrgico da comunidade a inspirar a pregação e a prece” e complementa: “falta acrescentar que o culto comunitário teve um notável papel na própria gestação do Novo Testamento.”[3]

Estando Xabier correto, pode-se apreciar as Sagradas Escrituras com um olhar especial para a dinâmica das primeiras comunidades.

No livro do Atos dos Apóstolos se encontra a sugestão da dinâmica das comunidades cristãs quando reunidas. A reunião das comunidades primitivas incluía o ensinamento dos apóstolos, a comunhão fraterna (koinonia), a fração do pão e as orações (Atos dos Apóstolos 2,42).[4]

Pensemos sobre a koinonia. Segundo Xabier Basurko, este elemento integrante da assembleia litúrgica possuía dois significados. O primeiro sentido refere-se à refeição em grupo e, o segundo, à coleta de donativos para as pessoas em estado de necessidade[5].

Ambas as dimensões da koinonia revelam algo interessante: a vida comunitária, tanto na refeição em grupo, quando comiam juntos ao redor de uma mesa, ou várias, quanto na coleta de donativos, quando os cristãos se uniam para socorrer alguém em estado de penúria. Duas dimensões profundamente significativas e que mostram a radicalidade do sentido de vida em comum. Nada de sofismas. Ali, naquelas comunidades, experimentava-se na prática uma vida cristã autêntica.  Obviamente que havia, entre elas, algumas comunidades que se recusavam a viver segundo esses princípios. Quando tratarmos da contribuição da teologia Paulina, veremos que a comunidade de Corinto, por exemplo, foi repreendida por Paulo por se negar a viver a partilha.

A reunião dos cristãos nas casas, conforme se extrai do livro do Atos dos Apóstolos, possuía sempre duas formas básicas de celebração: a Palavra e o banquete comum[6]. Primeiro faziam memória dos feitos de Jesus. Aqueles que presenciaram a trajetória do Nazareno ou que receberam, via tradição oral, os relatos de seus feitos, compartilhavam com os membros da assembleia. Após esta partilha, daquilo que seria o embrião dos Evangelhos, eles se reuniam em torno de uma mesa para banquetear. Esta herança persiste até os dias atuais, de forma simbólica, nas liturgias da Palavra e da Eucaristia, que estruturam a celebração da missa.

Os ambientes nos quais os primeiros cristãos se encontravam eram, provavelmente, casas – dommus ekklésia cedidas pelos seguidores do Nazareno.

Já no crepúsculo da era dos mártires, final do século III, houve uma inflexão considerável devido ao Édito de Milão[7] e ao Édito de Tessalônica[8], tornando o cristianismo, primeiramente, uma religião legal e, depois, oficial do império. Logo, houve um aumento ostensivo na quantidade de adeptos, tornando, segundo Xabier, o cristianismo a maior religião de todo o império[9].

          Este inchaço exigiu dos cristãos da época uma mudança no formato dos encontros e, evidentemente, também exigiu mudanças nos espaços nos quais eles se encontravam. Se antes, residências cedidas pelos fieis eram espaços ideais para os encontros, a partir de então, estes espaços seriam inadequados, devido ao número crescente de cristãos.

Assim, em meados do século III, os cristãos carecerão de espaços maiores para suas reuniões. Em princípio, vários edifícios civis foram cedidos pelo império. Exemplo disto são as basílicas, edifícios públicos que antes eram utilizados para as audiências do imperador (basileo). Muito embora a basílica fosse utilizada para os despachos do imperador, também servia como pavilhão do mercado, sessões do tribunal e sala de recepções dos patrícios ricos[10]. Sua principal característica era a longilinidade da nave central a qual se juntavam naves laterais. Este edifício civil foi então transferido para a Igreja cristã.

Depois das basílicas cedidas pelo império, passa-se a construir recintos próprios. Será, então, o alvorecer daquilo que se pode chamar de arquitetura cristã[11].O próprio império romano promoveu a construção de grandes edifícios destinados aos cultos em Roma, Constantinopla e Jerusalém. A partir do século IV, as construções das igrejas assumem cada vez mais a forma Basilical.

Estes edifícios monumentais impuseram grande transformação no jeito de celebrar das comunidades. A frontalidade do presidente em relação à assembleia, devido à forma longilínea do edifício, impunha uma posição rígida da assembleia em filas, umas detrás das outras. Esta forma da assembleia impedia a reciprocidade costumeira entre os fiéis, restando para eles o papel de simples espectadores[12].

Xabier Basurko defende que estas mudanças nas dimensões do lugar e na quantidade de pessoas determinou uma mutação na qualidade das relações entre os membros da comunidade cristã[13]. Se, antes, os encontros eram temperados com um certo acolhimento, pessoalidade e aproximação, com o advento dos edifícios monumentais, os encontros viriam a ser mais impessoais, com menor acolhimento e aproximação entre os fiéis.  

A partir do século VI, devido a uma série de mudanças na celebração dos sacramentos, acontece um paulatino afastamento entre o povo e a ação litúrgica[14]. Neste período, surgem as missas privadas, celebrações sem o povo, apenas com o sacerdote. Esta prática de “missa sine populo”, se ampliará no século VII e se generalizará no século VIII[15].

Neste período, a missa foi entendida menos como uma celebração da assembleia e mais como instrumento de graça. Segundo Klemens Ritchers, “a liturgia era um ofício exclusivo do clero”[16]. A comunidade já não era mais entendida como sujeito da liturgia. Aimé Georges Martimort[17] ainda aponta que:

La práctica cada vez más habitual em occidente de las misas llamadas privadas. Así, se celebran misas em días que la asamblea no estaba convocada y, además se celebraban varias misas em altares de la misma iglesia, em lugar de la misa única que reunía em otro tempo a todos los presbíteros alrededor de un solo altar, em estas misas la participación del pueblo quedó reducida a la simbólica presencia del ministro.[18]

Ele afirma também que o advento destas missas privadas representou um golpe fatal na assembleia.[19] Aos poucos, os cristãos deixaram de entender que no domingo deveriam reunir-se ao redor da Palavra e da Eucaristia e passaram a julgar a missa como um ato individual: assistir à missa.[20]

Esta separação entre o povo e a ação litúrgica, que poderá ser entendida como a separação entre o corpo clerical e o corpo laical, produziu uma ruptura simbólica bastante prejudicial ao conjunto da comunidade. A partir de então, estabeleceu-se uma hierarquização nociva que distanciou o povo da mesa da eucaristia.

Luis Maldonado defende que o surgimento de uma separação entre o presbitério e a nave (gradis, balaustradas, degraus), ao longo da Idade Média, foi uma das principais causas da crise litúrgica sofrida pela Igreja.[21] 

Provavelmente, o surgimento desta separação seguiu uma orientação eclesiástica. A ideia, o conceito, certamente foi anterior à separação física. O clima induziu a construção dos gradis, degraus e balaustradas. Entretanto, esta separação mencionada foi o sinal visível, e com acentuada carga simbólica, do que se pretendeu: afastar o povo da mesa da eucaristia, oferecendo a ele apenas a possibilidade da contemplação.

Em detrimento da participação da comunidade e do valor comunitário, promoveu-se o exercício da piedade individual e a importância da pessoa privada, do individualismo. Os cultos passam a ser destinados a conseguir a salvação do indivíduo e a missa fora tida como caminho para tal.

Nesse momento histórico, surgiram as missas penitenciais e as fundações de missas, por meios das quais algum fiel doava um valor para que se rezassem as missas em seu favor.[22]

Este movimento trouxe como consequência a multiplicação do número de sacerdotes, padres altaristas, cuja principal função era rezar as missas encomendadas pelos fiéis. Assim, o celebrante rezava sozinho e precisava dizer todas as respostas e preces que eram então destinadas à assembleia. Ocorreu, então, brutal ruptura entre a celebração eucarística e a comunidade.

No final do século XII, foi introduzida uma nova piedade com relação à eucaristia, aumentando ainda mais a distância entre o fiel e o sacramento. A partir de então o conjunto dos fiéis[23] se contentavam em apenas admirar e contemplar a eucaristia[24]. Será neste momento histórico que surge a necessidade de chamar a atenção do fiel para a consagração, por meio de um sinal sonoro: o tilintar dos sinos.

Todos estes ritos se acentuam em meados do século XIII, quando se percebeu normativas extremas que distanciaram ainda mais o povo da celebração da eucaristia. A sentença final seria esta: a proibição absoluta ao toque das espécies sacramentais por pessoas não consagradas[25]. Os fiéis tornaram-se, então, meros espectadores da hóstia consagrada[26], raramente podiam comer do alimento. Em geral não participavam da mesa, apenas assistiam a um acontecimento.

Obviamente, neste período conhecido como a baixa Idade Média, os costumes eclesiásticos influenciaram a forma de construir igrejas. O distanciamento entre o povo e a eucaristia, que na linha do tempo foi se consolidando e se cristalizando, contribuiu para moldar os templos nos quais aconteciam os cultos cristãos.

Xabier defende que estas situações de decadência tornam justificáveis as reações de protesto dos reformadores liderados por Lutero[27], que propôs, em seus primeiros escritos, medidas de considerável preocupação pastoral. Sugere a eliminação da missa privada, propõe sua celebração em língua vernacular e proíbe a adoração ao Santíssimo Sacramento.[28]

Em meados do século XVII, já na época do Barroco, na arte da contrarreforma, predominava um clima de triunfo e de espetáculo no espaço litúrgico. Xabier sugere que as igrejas construídas nesta época têm um ar de um “elegante salão de espetáculos”[29], no qual se mostra a eucaristia para adoração.

Ora, se era para contemplar visualmente apenas, a forma das igrejas precisava ser adequada ao citado propósito. Seus formatos predominantemente retangulares forçavam o posicionamento das pessoas de frente para o altar, de modo a direcionarem seus olhares para um ponto focal único: a Eucaristia. Nota-se, então, a espetacularização da eucaristia.

Vale registrar que, nesse período, não havia o costume de se alocar bancos nas igrejas. Os fieis ficavam em pé, posição que proporcionava maior dinamismo durante as celebrações. As pessoas poderiam se direcionar para os locais dos acontecimentos das celebrações, o momento do sermão, no púlpito, por exemplo, noutro instante, o momento da consagração, já no altar.

Ocorreu também a multiplicação dos altares laterais, nos quais predominavam as imagens dos santos, reforçando a ideia da piedade popular e devocional, meio para alimentar a fé do povo, em compensação, talvez, pelo desestímulo da comensalidade eucarística.

Com a condição de que a celebração acontecesse num idioma estranho (latim), as celebrações foram ficando ainda mais distantes do povo, impedindo a participação ativa da comunidade. Percebeu-se, neste período, que a liturgia se tornou uma representação quase-teatral[30].

Terminologia hoje evitada, o ato de assistir à missa, era, então, um emprego linguístico correto, dada as características deitadas sobre este papel.

Diante do incômodo representado por Lutero, os clérigos, ao invés de refletir acerca dos apontamentos dos reformadores, decidiram combatê-los, radicalizando suas posições. Considerando que os protestantes em suas teses negavam a ideia de um sacerdócio especial, os católicos escolheram ir em direção oposta, reafirmando e acentuando a distinção entre sacerdócio e povo, de tal modo que a contrarreforma decidiu preterir a participação comunitária do povo na liturgia.

Klemens Ritchers afirma que certas igrejas, já no início do século XX, edificaram presbitérios com até doze degraus, elevando o sacerdote consideravelmente em relação ao nível da assembleia. Um distanciamento quase abissal que acentuava e divinizava o corpo clerical enquanto relegava ao conjunto da comunidade reunida uma condição, se não profana, ao menos de expectadora.

Esta decisão acentuou o distanciamento entre o corpo clerical (sacerdotes) e o corpo laical (povo). Esta ruptura simbólica, que será abordada na sequência, neste trabalho, a partir da contribuição de Pierre Bourdieu, no capítulo sobre as questões sociológicas, comprometerá o sentido de comunidade experimentada pelos primeiros cristãos e bem sistematizada nas cartas paulinas. Diante desta escalada, cada vez mais agressiva, de medidas extremante prejudiciais à Igreja, há que se questionar se, nesse período, seria justo qualificar o conjunto dos fieis por comunidade.

Felizmente, a inflexão nesta curva descendente já despontava no horizonte. Em 1786, o Sínodo de Pistóia propôs uma alteração que incluía o incentivo à participação dos fiéis na liturgia. Entretanto, esta sugestão foi ignorada, tendo que ser retomada somente no concílio Vaticano II[31]. Compreensível. Havia um espírito de época (zeitgeist), um clima histórico, composto por inúmeras variáveis que formam o amálgama no meio do qual o sujeito histórico está e por meio do qual é inevitavelmente influenciado em suas decisões. O espírito de época não era favorável à medida que hoje é entendida como necessária, mas que, na época, não o fora. Muitas medidas progressistas que se deseja hoje para a Igreja não são possíveis devido, exatamente, ao zeitgeist contemporâneo. Enfim, sigamos nossa cronologia.

Muito embora o Sínodo do século XVIII tenha sido ignorado, a luz que dissipará tal escuridão ensaiava, ali, seus primeiros raios. Lembremos Guimarães Rosa, em “Grande Sertão: veredas”: à certa altura da obra, Riobaldo, dirigindo-se a Diadorim, afirma: “é só aos poucos é que o escuro fica claro”.[32]

1.2 O Movimento Litúrgico e o Concílio Vaticano II

Após este período doloroso para a experiência cristã, começou a despontar raios luminosos no horizonte. Na segunda metade do século XIX, surgiu o Movimento Litúrgico que buscou oxigenar a liturgia. Dentre as muitas reflexões, cabe destacar, para efeito de contributo aos estudos aqui dirigidos, a defesa da aproximação entre os fiéis e a comunhão eucarística, buscando romper a separação de séculos entre os fiéis e a santa eucaristia.

Patrick Pretot, em seu artigo para a publicação da comunidade de Bose, intitulado “Spazio Liturgico e Orientamento”, reproduz uma observação de Haquin[33]. Este afirma que após as reflexões de Martimort, e também da publicação da enciclopédia de Joseph Gelineau[34], ‘Dans Vos Assembleés’, houve uma mudança na utilização dos pronomes pessoais, do singular para o plural, durante as celebrações[35]. Pretot afirma que esta passagem do singular para o plural é por demais significativa, pois ela resgata a ideia da origem na qual na assembleia litúrgica abundava pluralidade.[36]

O Movimento Litúrgico teve sua emergência no alvorecer do Vaticano II. O Concílio foi um marco, um evento fundamental, que reanimou a Igreja de Cristo.

O Concílio pouco fala objetivamente sobre a edificação igreja, muito menos sobre o lugar da assembleia. Apenas propôs que a edificação destinada ao culto cristão deva ser apta para a participação dos fiéis, digna e convenientemente edificada[37]. Entretanto, em suas entrelinhas, as temáticas da participação ativa e frutuosa, com a instituição da celebração em idioma vernacular, a valorização da liturgia como fonte e cume da vida cristã, são elementos fundamentais que vão influenciar a mudança de paradigma na arquitetura das igrejas e na valorização do lugar da assembleia no corpo da edificação do templo.

Sobre a participação dos fiéis, a constituição do Vaticano II, Sacrosanctum Concilium, explicita importante ensinamento em seus números 11,14, 21 e 27.

Para assegurar esta eficácia plena, é necessário, porém, que os fiéis celebrem a Liturgia com rectidão de espírito, unam a sua mente às palavras que pronunciam, cooperem com a graça de Deus para não a receberem em vão. Por conseguinte, devem os pastores de almas velar para que, na acção litúrgica, não só se observem as leis de uma válida e lícita celebração, mas também que os fiéis nela participem consciente, activa e frutuosamente.[38]

É desejo ardente da Mãe Igreja que todos os fiéis cheguem à plena, consciente e activa participação nas celebrações litúrgicas, que a própria natureza da Liturgia exige e que é, em virtude do seu Baptismo, um direito e um dever do povo cristão, geração escolhida, sacerdócio real, nação santa, povo resgatado.[39]

Sempre que os ritos comportam, segundo a natureza particular de cada um, uma celebração comunitária, caracterizada pela presença e participação activa dos fiéis, inculque-se que esta deve preferir-se, na medida do possível, à celebração individual e como que privada. Isto é válido sobretudo para a celebração da Missa, ressalvando sempre a natureza pública e social de qualquer Missa e para a administração dos Sacramentos.[40]

Não há dúvida. Dentre os muitos avanços trazidos pelo Vaticano II, encontra-se o resgate do sentido de comunidade cristã, percebido nas primeiras comunidades, descritas no livro do Atos dos Apóstolos, nas Cartas Paulinas, na Patrística e no próprio Evangelho. Bebendo nestas fontes essenciais, os padres do Concílio deixaram um legado essencial.

Em vários parágrafos, os padres conciliares referem-se à participação ativa e frutuosa dos fiéis. E, para se promover e potencializar esta qualidade no seio da assembleia, diversas condições são indispensáveis, como a reforma litúrgica, a adaptação das músicas e cânticos, para evitar o espetáculo e promover e incentivar o coro da assembleia. Também era foco das reformas o espaço litúrgico, e por conseguinte, o lugar da assembleia, objeto de estudo deste trabalho.

O número 41 da Sacrosanctum Concilium, reforça a ideia, afirmando que:

a principal manifestação da Igreja consiste em uma participação perfeita e ‘activa’ de todo o povo santo de Deus na mesma celebração litúrgica, especialmente na mesma Eucaristia, numa única oração, ao redor do único altar a que preside o Bispo rodeado pelo presbitério e pelos ministros.[41]

Aqui, a atenção deve ser direcionada para a terminologia “ao redor de um único altar”. Sabe-se que há aqui duas intenções. A primeira é abolir os altares laterais das igrejas. Um único altar, pois só há um único cordeiro imolado: Cristo. A segunda intenção refere-se à ideia da ceia: ao redor da mesa. Quem é convidado para comer não pode ficar distante. Os convidados em geral, de acordo com o costume de cada cultura, são os primeiros a se aproximarem. Mas o sentido da palavra ainda é mais radical. Ao redor da mesa não é o mesmo que de fronte para a mesa. Ao redor é no seu entorno e não diante dela. A ideia implícita é que todos devem se aproximar, se achegar, vir para perto, o mais perto que puderem, pois será dia de festa, de comilança, de celebração. A fase da contemplação, apenas e tão somente, ficou com a Idade Média. Pode-se contemplar, obviamente, mas comer junto, lado a lado com o irmão será, a partir de então, o maior sinal da cristandade.

Dom Marcelo Molinero, monge beneditino argentino, afirma em sua obra que “entre os pontos mais alcançados pelo Concílio, que ocupa um lugar eminente, está o da revalorização da assembleia litúrgica”.[42] E acrescentamos: a revalorização do sentido de comunidade participativa.

Apesar de todas estas importantes reflexões, tanto do movimento litúrgico, quando do Concílio, que deveriam impactar no modo com que as casas da Igreja eram construídas, ainda por muito tempo as lideranças eclesiásticas resistiram (e ainda resistem) a estes bons ventos impulsionadores, direcionando suas velas para o quadrante medieval.

Klemens Richter apresentou um exemplo sintomático. Em seu livro, relata um concurso de arquitetura para a construção de uma nova casa da Igreja que ignorou solenemente as orientações recentes. Tratava-se do templo para a Igreja do Coração de Jesus em Munique-Neuhausen[43]. O edital do concurso possuía um escopo determinando o formato desejado pela arquidiocese. E este formato consistia numa planta monoaxial com desenvolvimento longitudinal. Numa extremidade o presbitério, elevado por diversos degraus e noutra a porta de entrada do templo. Os bancos dispostos neste espaço de tal modo que as pessoas ficassem enfileiradas umas atrás das outras e todas defronte para o altar. Um formato que mais revela o sentido de plateia do que de Eucaristia: comensais ao redor de uma mesa.

E este exemplo citado por Richter se multiplicou aos milhares, mesmo após o Vaticano II. Mais ainda: atualmente, mesmo após meio século das reflexões do concílio, as autoridades eclesiásticas resistem em abrir as janelas e cortinas de suas casas para a entrada da luz reformadora que dissipa o miasma que adoece a comunidade.

Basta olhar para a imensa maioria das casas da Igreja espalhadas pelo Brasil e pelo mundo. Insignificativa minoria possui uma forma que privilegia a participação ativa da assembleia litúrgica e valoriza a comunidade.


[1] ROSA, João Guimarães. A terceira margem do rio. In: ROSA, João Guimarães. Primeiras estórias. Rio de Janeiro: José Olympio, 1968. p. 35.

[2] A fonte Q é uma hipotética fonte usada na redação do Evangelho de Mateus e no Evangelho de Lucas. E definida como um material de conteúdo comum encontrado em Mateus e Lucas.

[3] BASURKO, Xabier. A vida litúrgico-sacramental da Igreja em sua evolução histórica. In: BOROBIO, Dionisio (Org.). A celebração da Igreja. São Paulo: Loyola, 1990, p. 41.

[4]  BÍBLIA: Tradução Ecumênica. TEB. São Paulo: Loyola, 2000.

[5] Cf. BASURKO, Xabier. A vida litúrgico-sacramental da Igreja em sua evolução histórica, p. 51.

[6] Cf. Ibid., p. 53.

[7] Cf. Édito de Milão, decretado por Constantino em 13 de junho de 313, pôs fim à perseguição do império aos cristãos

[8] Cf. Édito de Tessalônica, decretado por Teodósio em 27 de fevereiro de 380, tornou o cristianismo religião oficial do império romano, abolindo todas as outras práticas religiosas.

[9] Cf. BASURKO, Xabier. A vida litúrgico-sacramental da Igreja em sua evolução histórica, p. 57.

[10] Cf. RICHTER, Klemens. Espaços de Igrejas e imagens de Igrejas. O significado do espaço litúrgico para uma comunidade viva. Coimbra: GC Gráfica de Coimbra, 1998, p. 55.

[11] Cf. BASURKO, Xabier. A vida litúrgico-sacramental da Igreja em sua evolução histórica, p. 66.

[12] Cf. RICHTER, Klemens. Espaços de Igrejas e imagens de Igrejas, p. 56

[13] Cf. BASURKO, Xabier. A vida litúrgico-sacramental da Igreja em sua evolução histórica, p. 76.

[14] Cf. Ibid., p. 90.

[15] Cf. Ibid., p. 91.

[16] RICHTER, Klemens. Espaços de Igrejas e imagens de Igrejas, p. 57.

[17] Aimé Georges Martimort, padre francês, da cidade de Toulose, considerado grande teólogo sobre o sentido da assembleia. Foi pioneiro nesta temática com a publicação L’assemblée liturgique, na edição número 20 da La Maison Dieu, em 1949.

[18] González Padrós, Jaume. La asamblea litúrgica es un signo. Aportación teológica de Aimé G. Martimort. Phase, Barcelona: CPL, v. 43, n. 255, p. 234, set./out. 2003, p. 234. A prática cada vez mais comum de missas privadas no ocidente. Assim, as missas são celebradas nos dias em que a assembleia não foi convocada e, além disso, várias missas foram celebradas em altares da mesma igreja, em vez de uma única missa que reunia todos os sacerdotes em torno de um único altar. Nestas missas a participação do povo foi reduzida à presença simbólica do ministro. (tradução nossa)

[19] Cf. ID., La asamblea litúrgica es un signo, p. 234.

[20] Cf. ibid., p. 234.

[21] Cf. MALDONADO, Luis. A celebração litúrgica: Fenomenologia e teologia da celebração. In: BOROBIO, Dionísio (Org.). A celebração da Igreja. São Paulo: Loyola, 1990, p. 178.

[22] Cf. BASURKO, Xabier. A vida litúrgico-sacramental da Igreja em sua evolução histórica, p. 92.

[23] Cf. Não sei se é possível chamar aquele agrupamento de comunidade, uma vez que a mentalidade individualista é ali predominante.

[24] Cf. BASURKO, Xabier. A vida litúrgico-sacramental da Igreja em sua evolução histórica, p. 102.

[25] Cf. Ibid., p. 103.

[26] Cf. Ibid., p. 104.

[27] Cf. Ibid., p. 108.

[28] Cf. Ibid., p. 114.

[29] Ibid., p. 118.

[30] Cf. Ibid., p. 119.

[31] Cf. BASURKO, Xabier. A vida litúrgico-sacramental da Igreja em sua evolução histórica, p. 120.

[32]  ROSA, Joao Guimarães. Grande Sertão: veredas. 22. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2019, p.141.

[33] André Haquin, professor da faculdade de teologia da UC Luvain, em Louvain-la-Neuve, Paris.

[34] Joseph Gelineau, padre jesuíta francês, liturgista, especialista em música litúrgica cristã.

[35] Cf. PRETOT, Patrick. Spazio Liturgico e Orientamento. Magnano: Edizione Qiqajon, 2006, p. 113.

[36] Cf. Ibíd., p. 113.

[37] Cf. GOENAGA, José Antônio. A constituição de liturgia do Vaticano II. In: BOROBIO, Dionísio (Org.) A celebração da Igreja. São Paulo: Loyola, 1990, p. 146.

[38] CONSTITUIÇÃO Sacrosanctum Concilium sobre a Sagrada Liturgia. In: CONCÍLIO VATICANO II. 1962-1965. Vaticano II: mensagens, discursos, documentos. São Paulo: Paulinas, 1998, p. 11.

[39] Ibid., p. 14.

[40] Ibid., p. 27.

[41] CONSTITUIÇÃO Sacrosanctum Concilium sobre a Sagrada Liturgia, p. 41.

[42] MOLINERO, Marcelo Antônio Audelino. O espaço celebrativo como ícone da eclesiologia. Para uma teologia do espaço litúrgico. São Paulo: Paulus, 2019, p. 40.

[43] Cf. RICHTER, Klemens. Espaços de Igrejas e imagens de Igrejas, p. 63.

Está gostando do conteúdo? Compartilhe!

POSTS RECENTES

O Rosto de Cristo

O rosto mais conhecido no mundo é o rosto de Cristo. Independentemente do que possamos pensar ou crer, há pelo menos vinte séculos Jesus é

São Paulo, apóstolo

dia 25 de janeiro a Igreja celebra o dia de Sao Paulo, apóstolo, aquele que é um dos grandes responsáveis pelo cristianismo tal como o

Os povos da floresta

Nossos irmãos ameríndios, não foram adestrados nos moldes da sociedade ocidental. Para eles o trabalho é para a sua subsistência, de seus parentes e da tribo em geral. Trabalham para se alimentar, se vestir, ritualizar e se abrigar do sol e chuva. Não precisam estocar grandes quantidades de alimentos em celeiros imensos. Trabalham apenas para garantir sua vida e a vida da comunidade. Para os nativos da floresta não existe o sentido de “lucro”, sob o qual nós, povos dito civilizados, estamos submetidos, como um deus magno.

Democracia e o Domínio da Necessidade

Semana passada o empresário bolsonarista Cássio Joel Cenali, divulgou um vídeo no qual ele próprio, enquanto doava refeições (marmitas) à populares vulneráveis, negou uma refeição à uma mulher, após ela respondendo à pergunta do empresário, afirmar que votaria no Lula. Segundo o empresário, a pessoa com aquela predileção política não deveria comer. Segundo ele, ou ela muda de opinião e de voto ou não terá mais acesso àquela doação. Pergunto: teria esta senhora condições de escolher?