O espaço litúrgico e a imagem (teológica) da Igreja

Ronei Costa Martins Silva

Para tratar da questão apresentada no enunciado deste ensaio é preciso considerar uma simbiose entre dois tópicos, sendo eles a resplandecência o Mistério Pascal e o acolhimento ao povo de Deus, que aqui abordarei a partir do conceito de lugar da assembleia no espaço celebrativo. São estes os dois eixos em torno dos quais orbitam todas as demais temáticas relativas ao espaço litúrgico e sua imagem teológica. Muito embora, para efeito de análise, considerar-se-á dois eixos separados, a vivência pastoral ensina que não há separação evidente entre os temas. Ambos se interconectam, fundindo-se numa única massa monolítica por meio da qual se molda a experimentação da mística cristã intra paredes, nos espaços de oração. Esta necessária simbiose é evidente. Os sinais visíveis, que apontam para o invisível, contribuindo nesta busca pelo transcendente no imanente, e o povo reunido que faz esta experiência mística.

Importante, nesta breve introdução, hierarquizar estes dois conceitos aqui esculpidos. O povo reunido, enquanto assembleia orante, é a expressão primeira do ressuscitado, o corpo místico de Cristo, o corpo total.

“O Papa Paulo VI, na encíclica Mysterium Fidei, explicita a belíssima verdade mencionada na Sacrosanctum Concilium, sobre os modos de presença do Senhor na sua Igreja, dos quais ocupa o primeiro lugar a assembleia em oração, sobretudo na celebração eucarística.”[1]

Desse modo, o templo, os sinais visíveis, o projeto iconográfico, a ambientação do templo, seu projeto acústico e luminotécnico, não teriam sentido sem a presença do essencial: a comunidade reunida, razão da existência do templo e tudo o que nele abriga.

Feito este prólogo sigamos para uma sucinta abordagem dos dois eixos apresentados.

A resplandecência do Mistério Pascal no Espaço Litúrgico

A Casa de Oração não pode ser um espaço cujo significado se esgota no fato de abrigar as pessoas para determinados encontros.[2]  Construir e/ou reformar um espaço para abrigar a comunidade com suas práticas litúrgicas é muito mais que levantar paredes e mobiliar o espaço.[3] Edifica-se a Casa na qual ocorrerá o Banquete Eucarístico, que será uma antecipação do real Banquete Final, prenunciado pelos profetas[4] A intencionalidade do espaço litúrgico ultrapassa, portanto, sua materialidade, rumo ao intangível, num processo mistagógico cuja finalidade é a verdade da fé que se professa: Cristo ressuscitou, aleluia!

 Todos os elementos que compõem o programa iconográfico da casa de oração comunicam o essencial da mística cristã, num processo de contemplação dos sinais visíveis com vistas ao invisível. Os sinais visíveis, além de catequisar, simbolizam os sacramentos, por meio dos quais se experimenta a vida em Cristo e o espaço litúrgico é o lugar dos sacramentos, sobretudo da eucaristia[5]. As celebrações sacramentais baseiam-se nos sinais visíveis, que apontam para significados potencialmente contidos neles, tal como uma semente que potencialmente contém uma imensa árvore. Assim são os sinais: pode se ver uma frágil semente ou pode se ver uma frondosa árvore, basta escolher a verdade que se esconde aos olhos físicos. Mas mesmo esta verdade não explícita precisa de sinais visíveis mínimos para ser contemplada. Esta é a razão dos sinais. Na casa de oração deve, então, haver um caminho iconográfico cuja leitura aponte para a resplandecência do Mistério Pascal, uma iconografia cristocêntrica.

Indispensável ainda considerar a essencialidade das duas mesas, juntamente com a Fonte Batismal e a Cátedra. O Altar, é o lugar do sacrifício, ao mesmo tempo que é o próprio Cristo. Ele é o centro, sobre o qual se organiza e se dispõe toda a assembleia. Diz o salmista “O passarinho encontrou agasalho pros teus pequeninos/ O teu Altar, ó senhor, é abrigo pros teus peregrinos” (Sl 84)[6] Por esta razão, nada deve desviar a atenção. Assim o programa iconográfico não pode ofuscar nem desviar a atenção, mas sim direcionar os olhares da assembleia para o altar. A disposição arquitetônica e o programa iconográfico precisam privilegiar o Altar, sendo ele o centro e a razão do espaço litúrgico. O Ambão, a mesa da Palavra, é o lugar do anúncio mais esperado: ressuscitou, aleluia. Nele a homilia nos indica a Parusia do Juízo Final[7].  “O Ambão e o Altar formam o centro da liturgia: a Palavra e a Eucaristia, dimensões de uma única celebração: o Mistério Pascal”[8]. Por esta razão o estilo estético deve revelar uma sintonia e unidade destas duas mesas, pois nelas reside a centralidade da fé. Em sintonia com as duas mesas encontram-se a Fonte Batismal, da qual se nasce para a vida e a Cátedra ou Sedia, que indica a presença do Cristo no sacerdote – in persona Christi.

Entretanto, para além dos sinais visíveis, um ambiente adequado de oração precisa também reservar lugar para o vazio e o silêncio, como já dizia a poeta pernambucana, Clarice Lispector:

Mas já que se há de escrever,

Que ao menos não se esmaguem

Com as palavras as entrelinhas.

O melhor ainda não foi escrito.

O melhor está nas entrelinhas.[9]

Os arquitetos, artistas e pensadores das artes sacras, correm o risco de se sentir presunçosos e detentores dos saberes divinos com os quais edificariam a casa de oração ideal. Erro grande. A manifestação divina não está ao alcance de mãos humanas. Por isso é necessário uma postura humilde diante do Mistério. Por maior que seja o gênio humano a grandeza de Deus não cabe nele. Assim, é aconselhável que o espaço litúrgico também se constitua de vazios e silêncios, nos quais repousem o olhar e a escuta contemplativos daqueles que buscam a Deus tal como o profeta Elias que procurou no vento, no terremoto, no fogo e Deus estava no murmúrio de uma brisa leve e suave (1Reis 19, 11-12).[10]

Visando ampliar a compreensão desta proposta será descrita a seguir, a título de ilustração, uma breve experiência vivida pelo autor deste ensaio:

O momento de oração matinal que participei na Capela da Unisal PIO XI, logo no primeiro dia, causou-me estranhamento. Algo novo estava sendo proposto, diferente do cotidiano de oração da comunidade com o qual estava acostumado. E diante do novo, estranhei. Nos dias seguintes fui primeiramente me acostumando, depois me habituando para, ao final da primeira semana, compreender a práxis de oração vivida na capela Dom Clemente Isnar como extremamente necessária para a vivência de fé.

Refiro-me aos momentos de silêncio entre as partes da liturgia. Venho de um costume paroquial no qual o rito litúrgico é célere, emendado de forma a não permitir espaço para a meditação, busca interior e repercussão interna resultantes das meditações em comum. Desse modo, diante das primeiras lacunas silenciosas nas celebrações matinais na capela me vi inquieto, desajustado, esperando alguém propor sua continuidade. Arrisquei inclusive deduzir que alguém havia se esquecido de dar continuidade à celebração. Nos próximos dias, diante da repetição das lacunas para meditação, percebi naturalmente sua intencionalidade, quando finalmente mergulhei na proposta. Desde então minha experimentação da mística cristã amadureceu significativamente. Comparando a condução do rito litúrgico nas celebrações de costume, com a vivência nas manhãs de oração, enxerguei, tal como o cego curado por Jesus, a necessidade dos momentos de vazio e silêncio nos ritos litúrgicos para a contemplação do Mistério Pascal.[11]

            Pode se extrair desta pequena ilustração, duas contribuições para este trabalho. A primeira delas é a necessidade de se reservar lugar para o vazio e o silêncio, tanto nos ritos litúrgicos, quando no ordenamento do espaço litúrgico. A segunda contribuição, deriva da primeira e trata da necessidade de o artista e/ou arquiteto do espaço litúrgico viver o Mistério Pascal com a comunidade. Não teria sido possível abstrair a contribuição anunciada, sem que houvesse disposição para vivenciar integralmente a mística cristã. Daí se estrai que a vivência de fé é condição indispensável para a concepção do espaço de oração.

O lugar da assembleia litúrgica no espaço celebrativo

O Rito de Dedicação da Igreja e de Altar – RDIA, em sua introdução, ensina: “este povo santo, reunido pela unidade do Pai, do Filho e do Espírito Santo, é a Igreja ou Templo de Deus, construído de pedras vivas, onde o Pai é adorado em espírito e verdade.[12] Em seguida aparece a igreja-edifício, como sinal peculiar da Igreja peregrina na terra e imagem da Igreja celeste[13] O povo reunido, enquanto assembleia orante, é a expressão primeira do ressuscitado, o corpo místico de Cristo.

“O Papa Paulo VI, na encíclica Mysterium Fidei, explicita a belíssima verdade mencionada na Sacrosanctum Concilium, sobre os modos de presença do Senhor na sua Igreja, dos quais ocupa o primeiro lugar a assembleia em oração, sobretudo na celebração eucarística.”[14]

Desse modo, o templo, os sinais visíveis, o projeto iconográfico, a ambientação do templo, seu projeto acústico e luminotécnico, não teriam sentido sem a presença do essencial: a comunidade reunida, razão da existência do templo e tudo o que nele abriga.

Ainda nesta toada, o RDIA orienta para que a disposição geral do edifício manifeste, de algum modo, a imagem do povo reunido e permita uma ordem inteligente, bem como a possibilidade de se exercerem com decoro os diversos ministérios[15].

Um dos princípios teológicos que alicerçam a celebração pascal, contidos nas reflexões do Concílio Vaticano II refere-se ao ‘Cristo Total como sujeito da ação litúrgica’. Assim, o sujeito da ação litúrgica é a assembleia reunida como Povo de Deus. Já em 1918, Romano Guardini, filósofo e teólogo dizia ‘a liturgia apoia-se não no indivíduo, mas na comunidade dos fieis’[16].

As sagradas escrituras e a Patrística são fontes importantes de onde se deve haurir. Cristo nos ensina que onde dois ou três estiverem reunidos em seu nome, ele estará no meio deles (Mt 18-20)[17]. Já Paulo, o apóstolo dos gentios, oferece inúmeras passagens nas quais faz alusão à assembleias litúrgicas nas casas dos neo-cristãos. A mais significativa[18], segundo o teólogo Joseph Lécuyer, encontra-se na primeira Carta aos Coríntios. Em Corinto a Eucaristia era celebrada numa refeição tomada por todos (1Cor. 11,17-27)[19]. Entretanto haviam-se formado grupos e castas segundo a condição econômica dos membros. Durante as refeições, estes grupos comiam os seus alimentos sem se preocuparem com os outros, sem esperar que todos tivessem chegado, sem se preocupar com os mais pobres. Uns tinham uma refeição farta, enquanto outros não comiam o suficiente. Diante disso Paulo alerta a comunidade, afirmando de forma contundente que esta prática quebra a unidade da assembleia e por conseguinte destrói o Corpo de Cristo. Paulo então deixa claro que a assembleia não é uma reunião qualquer, é o Corpo de Cristo, o Corpo Total, e todo atentado contra a assembleia é atentado contra o Corpo do Senhor.

Com relação à comunidade dos Hebreus, cujos membros eram negligentes em participar das assembleias e costumavam abandoná-las antes do término[20], Paulo corrige com severidade e ensina que a comunhão na fé com os outros crentes é condição de salvação[21].

Os Santos Padres também têm muita contribuição a dar. Desde a era apostólica e conforme as prescrições do Novo testamento, a Didaké[22] ensina que se devem reunir os cristãos para partir o pão e dar graças[23]. Ignácio de Antioquia frequentemente lembra desta obrigação e pede que se reúnam com mais frequência para dar ações de graças e louvores à Deus.

A assembleia é então o sacramento da unidade. A Didascália Siríaca[24] orienta à ensinar 

“o povo, através de preceitos e exortações, a frequentar a assembleia e a jamais faltar a ela, que todos se encontrem sempre presentes, que não diminuam a igreja pela sua ausência, e que não privem o Corpo de Cristo de nenhum dos seus membros.”[25]

Ainda ensina o teólogo Joseph Lécuyer que a igreja não existe senão na medida em que os seus membros foram chamados à assembleia e permanecem ordenados à ela[26]

Entretanto, a despeito dos ensinamentos dos documentos da igreja, da Patrística e do próprio Evangelho, permanece um desprestígio do lugar da assembleia. Vivemos uma sacralidade ambígua, excessivamente ligadas à objetos e às coisas e desconectada das pessoas. Ajoelhamos diante do tabernáculo vazio, logo após a comunhão e, na sequência, negamos Cristo no irmão. Esta condição potencializada, ampliada, oferece pistas para explicar o costume equivocado em não se privilegiar o lugar da assembleia no espaço celebrativo.

            Costumeiramente vemos espaços de celebração que desprestigiam a assembleia, seja pela posição e formato do presbitério, seja pela disposição da assembleia que não revela o sentido de corpo, Corpo Místico de Cristo.

Os ensinamentos tanto dos documentos da Igreja, quanto da Patrística e das Sagradas Escrituras são claros: não se pode prescindir de um espaço litúrgico que acolha dignamente e permita ao povo de Deus reunido participar ativamente da Ceia Pascal.

A assembleia litúrgica é o povo sacerdotal que, convocada pela Palavra, que é Cristo, se reúne para celebrar o Mistério Pascal. Sujeito da celebração, ela expressa e manifesta a Igreja como Corpo de Cristo, reunido pela ação do Espírito Santo: “Pois onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome, eu estou ali, no meio deles” (Mt 18,20)[27].

A assembleia reunida, sendo o Corpo Místico de Cristo, carece de um espaço condigno, suficiente para a manifestação de sua sacralidade. Neste sentido, o acolhimento do povo de Deus é condição necessária para a experimentação do Sagrado na casa de oração. A Instrução Geral do Missal Romano – IGMR ensina:

“Uma conveniente disposição da igreja e seus anexos, capaz de satisfazer realmente às exigências do nosso tempo, requer que se atenda, não apenas àquilo que diretamente se relaciona com a celebração das ações sagradas, mas também a tudo o que possa contribuir para a conveniente comodidade dos fiéis, como se faz habitualmente nos lugares onde o povo se reúne.”[28]

O espaço litúrgico deve ser acolhedor, permitindo com que a comunidade se identifique com o templo, criando um sentimento de pertencimento, envolvimento e identificação. Modelos arquitetônicos formatados de outras culturas podem ser inadequados, uma vez que a comunidade pode não se reconhecer neles. O próprio Jesus, para explicar o amor de Deus, usa em sua retórica recursos da cultura local, da Palestina do século primeiro, cujos povos eram predominantemente camponeses, para desenvolver suas parábolas. Sabia o Mestre que ao fazer isto aproximava Deus das pessoas, facilitando a compreensão daquilo eles não podiam entender imediatamente pelos sentidos. Ora, se o mestre deu este ensinamento, é lícito usá-lo também na arquitetura dos espaços de oração.

Estudando a história do povo de Israel e a incursão dos profetas e seus registros na cronologia histórica, percebe-se claramente que a revelação Divina acontece na história da humanidade de forma atemporal, entretanto sua percepção é inculturada e depende das condições sócio/culturais e políticas de cada momento histórico.

            Ao se percorrer a história do antigo testamento percebe-se claramente esta relação revelação/percepção. Exemplo disto está no livro de Isaias, precisamente no trecho compreendido entre os capítulos 40 a 55. O contexto histórico envolve o exílio do povo de Israel para a Babilônia, ocorrido em duas deportações, por volta do ano 597 e 587 antes de Cristo. Na ocasião Nabucodonosor, rei da Babilônia, além de submeter e escravizar o povo, decide destruir a cidade e o Templo, morada do Senhor de Israel. Antes da invasão babilônica, Deus se revelava à seu povo e a percepção inculturada alcançava alguns preceitos mantidos até então, como por exemplo, a obrigação de peregrinar até o Templo de Jerusalém, morada do Senhor, pelo menos uma vez ao ano.

Após a invasão, o povo de Israel foi exilado, alguns escravizados na Babilônia e a cidade e o Templo destruídos. Deus continuava se revelando tal e qual à seu povo, mas a percepção de então mudara. Não havia mais a necessidade da visita à cidade Santa, muito menos ao Templo, pois Deus está em todos os lugares, inclusive na Babilônia, bastava seguir alguns preceitos para estar em comunhão com o senhor.

Eis que se extrai desta abordagem a ideia de que Deus se revela, mas a recepção e contextualização é inculturada. Ora, se a revelação é atemporal e Deus se mostra ontem, hoje e sempre, tal e qual, e se a sua percepção é inculturada, então não é demasiado estranho considerar que na atualidade esta fórmula continua válida.

Ainda nesta toada, outro exemplo claro é a devoção aos presépios, em sua imensa maioria inculturados. A cena do nascimento do Menino Deus, retratada na tradição dos presépios é carregada de sinais vernaculares. Não se vê, em regra geral, camelos e lhamas, mas sim animais vinculados à região em que o presépio foi concebido. E isto não agride, muito menos é sinal de escândalo, pelo contrário, os sinais locais reforçam a verdade da fé para aqueles que devotam suas preces ao Menino Deus simbolizado naquela cena: “porque um menino nos nasceu, um filho nos foi dado; a soberania repousa sobre seus ombros, e ele se chama: Conselheiro admirável, Deus forte, Pai eterno, Príncipe da paz (Isaías 9,5).”[29]

Neste sentido o desafio que se apresenta é o de buscar perceber a revelação Divina na temporalidade presente. Refinando mais, tendo como foco as atividades que serão desenvolvidas pelos especialistas em Espaço Litúrgico, pode-se dizer que o desafio é buscar edificar uma casa de oração que possa sintonizar o binômio revelação/recepção na contemporaneidade, afim de que a recepção seja mais próxima da revelação. Desafio certamente inalcançável, utópico, mas parafraseando Eduardo Galeano, desafio à vista tal como a linha do horizonte, que embora inalcançável, motiva a continuar caminhando[30]

Diante da tarefa posta algumas pistas podem indicar um caminho possível para esta aproximação revelação/recepção. Sabe-se, pela tradição das escrituras, que a percepção da revelação é inculturada, ou seja, baseia-se nas experiências vividas pelo povo, cada qual em sua época e com a sua cultura.[31] Então a concepção do espaço litúrgico deve resplandecer o Mistério Pascal, a partir do acúmulo cultural do povo a que se destina a casa de oração: um espaço de encontro da comunidade de fé. Nela as pessoas devem ser acolhidas para o encontro com Cristo.

Para se buscar edificar um espaço de oração que seja coerente com a revelação Divina e a percepção do povo de Deus é preciso compreender o espaço litúrgico como um ambiente da assembleia reunida, um espaço de encontro das pessoas de fé, para, uma vez reunidas, recontarem e viverem o memorial da Páscoa de Cristo. O templo então, não é para Deus, mas sim para a Igreja que se reúne. O acolhimento do povo de Deus é condição necessária para a experimentação do sagrado na casa de oração

Parece, então, adequado considerar o acúmulo cultural da comunidade local na ocasião da construção e/ou reforma da casa de oração, visando acolher as influências da comunidade, para que ela se sinta parte do templo. Quanto mais os sinais visíveis da fé forem semelhantes aos elementos vernaculares da comunidade, mais ela conseguirá transcender por meio deles, para ver além dos sinais visíveis, encontrando o essencial, que mora onde a vista não alcança. Trata-se, então, de considerar o binômio imanência/transcendência, tendo como ponto de partida uma imanência inculturada, enraizada na experiência cultural local, como condição primeira para a acolhida da comunidade de fé na casa de oração e para a vivência do Mistério Pascal.

Contribui significativamente se o projeto evitar o costumeiro estranhamento que a ostentação arquitetônica provoca. “A simplicidade e o despojamento são os melhores caminhos para se atingir o belo e o sublime”[32]. Trata-se aqui de considerar a beleza como elemento comunicador e cativador, sem, entretanto, revestir este mesmo ambiente de uma desnecessária ostentação, incoerente e desconexa com a vida do povo, em sua imensa maioria. Tal como nas palavras inspiradoras da Sacro Sanctum Concilium, “um rito que manifeste nobre simplicidade”[33]. Aludindo à estas palavras e transportando-as para o campo da arquitetura sacra, pode-se ousar: um espaço litúrgico que manifeste a “nobre simplicidade”, afim de que o sagrado não seja ofuscado e que a comunidade se sinta ali acolhida para celebrar o Mistério Pascal.

Percebe-se, a despeito dos ensinamentos dos documentos da igreja e do próprio Evangelho, um desprestígio do lugar da assembleia. Vivemos uma sacralidade ambígua, excessivamente ligadas à objetos e às coisas e desconectada das pessoas. Ajoelhamos diante do tabernáculo vazio, logo após a comunhão e para na sequência negamos Cristo no irmão. Esta condição potencializada pode explicar o costume equivocado em não se privilegiar o lugar da assembleia no espaço celebrativo.

Diante deste preceito não se pode prescindir de um espaço litúrgico que acolha dignamente e permita que o povo de Deus reunido possa participar ativamente da Ceia Pascal. Costumeiramente vemos espaços de celebração que desprestigiam a assembleia, seja pelo posição e formato do presbitério, seja pela disposição da assembleia que não revela o sentido de corpo, Corpo Místico de Cristo.           

            Este olhar para o espaço de celebração é necessário e fundamental, haja vista sua influência na promoção dos valores cristãos no seio da comunidade de fé. A mistagogia do espaço que nos conduz para a vivência do mistério pascal de Cristo e para a expectativa da nossa páscoa é premissa da arquitetura sagrada cristã.

O espaço litúrgico é, portanto, um lugar que deve favorecer a participação ativa e frutuosa da comunidade /Corpo Místico de Cristo, conduzindo as experiências de fé para que, como ensina papa Paulo VI, na encíclica Mistérium Fidei, vislumbrarmos Cristo presente na assembleia em oração.

Eis o nosso desafio!


[1] MORAES, Francisco Figueiredo de. Espaço do Culto – Á imagem da Igreja. São Paulo: Edições Loyola, 2009, p. 52.

[2] MORAES, Francisco Figueiredo de. Espaço do Culto – Á imagem da Igreja. São Paulo: Edições Loyola, 2009, p. 25.

[3] MACHADO, Celi Regina. O Local de Celebração – Arquitetura e Liturgia, São Paulo, Paulinas, 2001 p. 67

[4] Exortação Apostólica pós Sinodal Verbum Domini: Sobre a Palavra de Deus na Vida da Igreja, São Paulo: Paulinas, 2011, n 31 e 32.

[5] Catecismo da Igreja Católica, 1145.

[6] OFÍCIO DIVINO DAS COMUNIDADES, São Paulo: Paulus, 19° Reimpressão, 2015, n 99.

[7] Pastro, Cláudio. A Arte no Cristianismo: fundamentos, linguagem, espaço, São Paulo: Paulus, 2010 p. 302

[8] Ibid., p. 303

[9] Apub Lara, Luis Valter. A bíblia e o desafio da interpretação sociológica, São Paulo: Paulus, 2009 p 5.

[10] Bíblia: tradução Ecumênica – TEB, São Paulo, Loyola, 2.000.

[11] O curso de Espaço Litúrgico – Arquitetura e Arte Sacra, da UNISAL PIO XI, incluiu em todos os dias de aulas, momentos matinais de oração, na capela da instituição. Estes momentos proporcionaram a vivência descrita no corpo deste traalho.

[12] Orientações para projeto e construção de igrejas e disposição do espaço celebrativo – CNBB – 2013 p110

[13] Ibidem p110

[14] MORAES, Francisco Figueiredo de. Espaço do Culto – Á imagem da Igreja. São Paulo: Edições Loyola, 2009, p. 52.

[15] Orientações para projeto e construção de igrejas e disposição do espaço celebrativo – CNBB – 2013 p111

[16] Apud 53º Assembleia Geral da CNBB, artigo Liturgia e Vida, p4

[17] Bíblia: tradução Ecumênica – TEB, São Paulo, Loyola, 2.000.

[18] CONCILIUM – Revista Internacional de Teologia. A Assembleia Litúrgica, Fundamentos bíblicos e patrísticos. Editora do Minho, Lisboa, p9.

[19] Bíblia: tradução Ecumênica – TEB, São Paulo, Loyola, 2.000.

[20] CONCILIUM – Revista Internacional de Teologia. A Assembleia Litúrgica, Fundamentos bíblicos e patrísticos. Editora do Minho, Lisboa, p9.

[21] Ibidem, p11

[22] Didaké é a Instrução dos Doze Apóstolos, um escrito do século I que trata do catecismo cristão. É constituído de dezesseis capítulos, e apesar de ser uma obra pequena, é de grande valor histórico e teológico.

[23] CONCILIUM – Revista Internacional de Teologia. A Assembleia Litúrgica, Fundamentos bíblicos e patrísticos. Editora do Minho, Lisboa, p9.

[23] Ibidem, p12

[24] Didascália siríaca: Conjunto de orientações e ensinamentos do catecismo na Síria.

[25] CONCILIUM – Revista Internacional de Teologia. A Assembleia Litúrgica, Fundamentos bíblicos e patrísticos. Editora do Minho, Lisboa, p17

[26] Ibidem, p18

[27] Orientações para projeto e construção de Igrejas e disposição do Espaço Celebrativo, Edições CNBB. 2013, p24.

[28] Instrução Geral do Missal Romano 293.

[29] Bíblia: tradução Ecumênica – TEB, São Paulo, Loyola, 2.000.

[30] Eduardo Galeano, jornalista e escritor uruguaio ensinou que “A utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar.”

[31] Entende-se por cultura tudo aquilo que está entre a necessidade e a satisfação da necessidade. Fome, por exemplo é uma necessidade. A satisfação da necessidade é alimentar-se. Assim, como acontece o ato de alimentar-se é cultural, pode se comer um sushi, um churrasco, ou um vatapá, o que comer e como comer é cultural. O mesmo acontece com as demais necessidades humanas. Assim amplia-se a definição de cultura, saltando de mero entretenimento, para um conceito antropológico mais amplo.

[32] MACHADO, Celi Regina. O Local de Celeração – Arquitetura e Litúrgia, São Paulo, Paulinas, p. 67.

[33] Cf. CONSTITUIÇÃO Sacrosanctum Concilium, sobre a Sagrada Liturgia, 1962-1965. n 34. Disponível em:  http://www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/documents/vat-ii_const_19631204_sacrosanctum-concilium_po.html#. Acesso em: 17 julh. 2017.

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