A democracia é, sem sombra de dúvidas, o que de melhor a humanidade pode criar, em termos de organização social e política. A despeito disto, também é fato incontroverso que a nossa democracia precisa ser aperfeiçoada a partir da consolidação de mecanismos de participação que sintonize significante e significado, ou seja, se democracia é o governo do povo é salutar que tal sentido seja efetivado. Há vários obstáculos em nosso sistema de governo que impedem nossa aproximação da mesa de onde são tomadas as decisões que nos afetam diretamente. Tais obstáculos devem ser superados, a bem do aperfeiçoamento da democracia.

Um destes obstáculos refere-se ao sistema de representação parlamentar. Ao nos servirmos da etimologia, notaremos que a palavra “representar” é composta por dois termos latinos. Primeiramente o “res”, que significa “coisa” e o “presenta” que significa “tornar presente”. Assim, na sua origem, a palavra “representar” significa “tornar presente algo”. Desse modo, não é difícil deduzir que o parlamentar, na condição de representante, deve única e exclusivamente tornar presente algo. A indagação que resta para fecharmos a compreensão reside neste “algo” que deve tornar-se presente. A resposta é simples: a coisa a se tornar presente é a vontade popular. Seguinte este preceito, o parlamentar deve, então, se anular enquanto indivíduo para ser tão somente o canal pelo qual será conduzida a vontade popular.

Sabemos, entretanto, que este sacerdócio, em favor do bem comum, é solenemente ignorado pelo sistema político e pelos indivíduos que ocupam as tão dignas representações nos parlamentos. O atual sistema político se consolidou numa estrutura operacional que privilegia as decisões subjetivas de cada parlamentar, como se este fosse dotado da onisciência popular, ou seja, como se ele tivesse uma antena sobre a cabeça, capaz de captar o desejo coletivo e o fazer valer no parlamento. Como não há antena, muito menos onisciência a sociedade se sujeita ás vontades subjetivas daquele que, eleito, ignora sua função representativa.

É muito provável que esta seja a causa da atual crise da democracia representativa, uma vez que, após eleito, o representante, por decisão unilateral, se divorcia do povo para o qual fizera muitas promessas e cujo enlace e partilha das decisões deveriam durar o tempo exato da legislatura. Tal divórcio, se por um lado impõe um abandono, por outro permitirá ao parlamentar eleito, uma liberdade infinita para costurar acordos duvidosos à portas fechadas, sem que precise partilhas as decisões ou prestar contas. Hanna Pitkin, cientista política estadunidense, em seu livro clássico The concept of representation, sugere que este conceito de representação cristalizou uma nova forma de oligarquia, exclusivista e excludente, a oligarquia dos agentes políticos profissionais, cujos interesses e ambições orbitam apenas a esfera individual, em detrimento da coletividade.

A esperança reside no advento dos mandatos parlamentares coletivos e compartilhados. Tal iniciativa é caracterizada pela partilha do poder com um grupo de cidadãos. Enquanto num mandato tradicional o parlamentar tem a liberdade para atuar de acordo com seus interesses, no mandato coletivo a atuação do parlamentar é submetida à vontade de um grupo de pessoas, que formalizam um conselho político e que são qualificadas como co-parlamentares.

Neste modelo, o conselho é soberano e suas decisões têm caráter deliberativo. Assim a conduta do mandato parlamentar, sua postura política diante dos problemas da sociedade são sempre decididas no conselho político e conduzidas pelo então mandatário.

          O conselho, formado por co-parlamentares, pretende então balizar as ações do mandato, sendo seus membros, em última instância, os verdadeiros legisladores.

Este formato de atuação se distancia do modelo tradicional do fazer política, da democracia representativa, e apresenta um outro modo de legislar, um modo que faça valer a democracia participativa e direta, na qual os cidadãos possam gerir a coisa pública segundo seus interesses de fato.

          Nestes moldes o legislador torna-se apenas condutor das deliberações surgidas no seio da sociedade, respeitando rigorosamente a etimologia da palavra “representante”. E a sociedade por sua vez não se isentará da responsabilidade de acompanhar e nortear seu parlamentar durante todo o período em que ele estiver nas câmaras e assembleias.

Trabalha-se aqui à luz dos ensinamentos teóricos do filósofo italiano Antônio Gramsci, que propõe um “Estado Ampliado”. Melhor dizendo: que as decisões políticas sejam tomadas por um grupo ampliado e não conduzidas por uma casta política mais suscetível à sedução das benesses do poder, como por exemplo, à corrupção.

          E por falar em corrupção, exercitemos a hipótese da compra de votos numa determinada votação em plenário, na qual votarão os parlamentares. Se por um lado, no mandato tradicional, o parlamentar poderá decidir individualmente seu voto e se se submeterá aos favores oferecidos pelos lobistas interessados no resultado da votação, por outro, no mandato coletivo, o parlamentar obedecerá a decisão já proferida pelo seus co-parlamentares, organizados num conselho político. Percebe-se claramente, então, que o mandato coletivo é mais refratário à corrupção, se comparado ao modelo tradicional, uma vez que impõe, além da partilha das decisões, uma maior transparência destas.

A nossa esperança se intensifica quando notamos que estas iniciativas estão se espalhando pelo Brasil e pelo mundo. A RAPS – Rede de Ação Política pela Sustentabilidade, mapeou iniciativas na Suécia, com o partido Demoex, na Austrália, com a ODD- Democracia Direta OnLine, na Itália com o Movimento Cinco Estrelas, na Islândia coma  Assembleia Constituinte da Islândia, na Argentina com o Partido de La Rede e na Espanha, com o Podemos. No Brasil a RAPS estudou 22 mandatos coletivos, desde 2012.

Dentre os mandatos coletivos estudados, um aconteceu em Limeira, interior de São Paulo, entre os anos de 2008 e 2016. Um mandato coletivo formado pelo dezenas de pessoas oriundas dos mais diversos extratos da sociedade, com empresários, professores, advogados, sociólogos, filósofos, pedagogos, contadores, assistentes sociais, estudantes, donas de casa, aposentados, todos organizados num conselho deliberativo que se reunia semanalmente e que, por 8 anos, balizou a atuação do parlamentar.

Nesta iniciativa, absolutamente todas as decisões foram partilhadas e seguidas à risca pelo parlamentar. Desde a indicação dos assessores a serem contratados pelo gabinete, até as entrevistas concedidas aos meios de comunicação, passando pelos projetos de Lei, votações e demais posições políticas. Uma iniciativa exitosa.

Nas eleições municipais que se enceraram a pouco, inúmeras iniciativas como esta puderam ser percebidas pelo Brasil, das quais duas em Limeira.  Embora significativas, esperamos que este número aumente ainda mais, de modo a inibir aqueles que desejam a manutenção dos mandatos tradicionais.

Por fim, para aqueles que se entusiasmaram com a ideia, é de fundamental importância que nos engajemos numa tarefa: a formalização dos mandatos coletivos. Atualmente não há legislação em vigor que acolha este tipo de atuação política. Legalmente o parlamentar do mandato coletivo ainda é, sozinho, o mandatário. Para efeitos legais, a figura dos co-parlamentares não existe. É preciso que nos unamos em favor da definição de um legislação que acolha esta excelente iniciativa, em favor do aprimoramento da nossa democracia. Eis o nosso desafio.

Há Braços!

Ronei Costa Martins Silva é arquiteto e urbanista e pós graduado em arquitetura e arte sacra. Possui diversas obras de arquitetura sacra espalhadas por São Paulo e outros três estados. Em 2018 foi convidado para presentear o Papa Francisco com uma obra sua, a Cruz da Esperança. Possui onze obras de arquitetura selecionadas para Mostras Nacionais, sendo duas em 2017 e nove em 2019.

Também é pesquisador da máscara do palhaço há 21 anos, tendo atuado em hospitais, presídios e outros espaços de vulnerabilidade social. É pai do Benício.

Entre 2008 e 2016 foi vereador em Limeira, a partir da premissa do Mandato Coletivo.

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